segunda-feira, 12 de dezembro de 2016



A Surpreendente e "Nova Realidade" do Verdadeiro Enredo de Desenredo     




Nota da Autora:


   
     Desde 1996, após graduar-me em Letras, venho estudando a obra de Guimarães Rosa, e a leitura de "Desenredo" ocupou meus pensamentos por longos anos, pois diferentemente de todos, eu sempre suspeitei da bondade e do amor de Jó Joaquim por Irlívia.
      Resolvi, por bem, tirar minhas dúvidas: debrucei-me sobre o texto e realizei uma minuciosa análise do discurso da narrativa, "até que...deu-se o desmastreio".  Penetrei nas camadas mais profundas da linguagem desse autor, e retirei "as sete capas" que encobriam O Verdadeiro Enredo de Desenredo.
   Este ensaio é, basicamente, a réplica a todos os que li, não obstante, minha intenção é das melhores: a de que ele sirva como Nova Ferramenta de Desvendamento da Produção Linguística de Guimarães Rosa, em relação a "Grande Sertão:Veredas".
    


  


Silvana Borges Medeiros do Carmo

 Graduada em 1996, em Letras, Português-Francês, pela Universidade Católica de Santos, SP. 






Ao meu amado e saudoso pai.






     Considerações Indispensáveis sobre o conceito  Rosiano em torno da filosofia da palavra, antes de procederem à leitura do  Conto e do Ensaio Crítico.


     Como exemplo de partida, toma-se a famosa conclusão a que chegou Descartes: — “Penso, logo existo”.
      Disposta nessa ordem, a existência está subordinada ao ato de pensar, fato que exclui o restante dos seres não pensantes, pois não possuem meios para reconhecer a própria existência, embora existam... 
     Diferentemente de Descartes, Guimarães Rosa, em suas obras, cuida em estabelecer significativa distinção ao empregar o verbo “ser” e o “existir”: — O “existir” refere-se a tudo o que é concreto: aos minerais, vegetais e animais, e também à concretude do ser humano, incluindo seu cérebro, de forma que esse existe, apenas como suporte para a alma “ser”. 
     Em outras palavras, a alma “é”, e o corpo “existe”. 
     Se Rosa tivesse sido o autor da Conclusão a que chegou Descartes, provavelmente tê-la-ia desdobrado em: “Penso, logo sou”, e “Sou concreto, logo existo”. 
    Mas essa foi apenas uma hipótese, porque a definição literal de Guimarães Rosa, a esse respeito, foi a seguinte: “O que é para ser, são as palavras”. Certamente não há nada mais incompreensível do que essa afirmação, mas para elucidá-la, foi retirado da página 13 (treze) de “Grande Sertão: Veredas”, grandiosa Obra-síntese de Guimarães Rosa, este pequeno trecho: — “Para pensar longe, sou cão mestre — o senhor solte em minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos amém!”. 

*Quando palavras ou trechos literais forem retirados da obra desse autor, e de outros que serão citados, a ortografia original também será respeitada. 


     Ao rastrear “a idéia ligeira”, Rosa chegou ao conceito divino da criação da palavra, pois a crescente velocidade dessa expressão simboliza a rapidez do Sopro da Inteligência Divina, que animou a existência do homem, no exato momento em que ele ganhou “a alma, e passou a ser”, no sentido de “ser pensante”. 
   Exemplo ainda mais esclarecedor é a estória do livro intitulado “O Milagre de Anne Sullivan”, cuja personagem nasceu privada dos três sentidos fundamentais para o aprendizado da palavra: - visão, audição e fala, sem os quais, a menina apenas “existia”, mas não era; já que no conceito rosiano “o que é para ser, são as palavras”. 
    Sem conhecer os vocábulos, Anne não poderia escolhê-los, nem combiná-los para formar frases e expressões, e dizer o que queria, desejava ou sentia! Fisicamente, em seu estado de existência, Anne era normal, mas com o cérebro totalmente desprovido de palavras, permanecia em estado vegetativo, tal qual uma flor. Porém, a tutora de Anne conseguiu criar um código linguístico através da palavra-táctil, e estabeleceu a comunicação entre ambas.  
     Notem que foi dito “através e não por meio da palavra”, que essa não é o simples instrumento do ato de pensar; mas constitui o pensamento. O instrumento desse ato é o cérebro, que não pensa “in vácuo”. O cérebro pode ser comparado a um computador que, mesmo estando perfeito e ligado na tomada, não pode processar, se não lhe forem inseridos os códigos linguísticos.  
     A palavra pode, pois, pertencer a qualquer tipo de código, não obstante, é unicamente através de seu conhecimento, escolha e combinações, que se forma “o ser que vive o pensamento”. Para concluir, note que o coração, ao bater, vive o corpo físico, incluindo o cérebro, o instrumento; e somente com o conhecimento das palavras é que se pode viver o pensamento. 
     Tudo o que foi explicado até o momento, na verdade, trata-se da questão da Metafísica da Linguagem, que são as ciências naturais como a Química, a Física e a Matemática, que explicam os fenômenos produtivos da linguagem, e que, sobretudo, gera profunda inquietação. 

     Bernardo Gersen, num artigo publicado no Suplemento Literário, em 24 e 31 de março, em O Estado de São Paulo, diz o seguinte a respeito da principal personagem de Grande Sertão:Veredas: ... “No ex-jagunço Riobaldo vamos encontrar, em estado de relativa pureza, o traço fundamental que distingue o homem dos outros animais: a inquietação metafísica, a interrogação constante ao cosmos, o desejo de ir às fontes”... ... “Como o Fausto, Riobaldo é assim uma imagem do homem moderno para quem o maior enigma, antes de tudo, é ... o próprio homem”. 

      Resta informar o seguinte sobre Guimarães Rosa: - ele foi médico, Cônsul geral do Brasil, em Hamburgo, (local de onde, conscientemente, provocou Hitler fora das normas da Diplomacia e, juntamente com sua esposa, conseguiu salvar a vida de muitos judeus). Cultíssimo, devotou-se ao estudo da Filosofia Pura e da Religiosa, como verdadeiro teólogo autodidata. O Kardecismo pareceu ser a filosofia cristã que mais o satisfez, dentre todas as suas “inquietações”. 
      — Além do português, falava fluentemente inglês, alemão, francês, espanhol, italiano e lia em servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe, malaio, grego-clássico e latim. 
     Como escritor, pertenceu à Escola Modernista-Regionalista, mas universalizou seus textos, ao transformar o micro em macrocosmo (o regional com sentido de universal), tanto pelo conteúdo filosófico e transcendental, quanto por explorar, minuciosamente, “os escaninhos da alma humana”. 
       Pela riqueza de seus conhecimentos, Guimarães Rosa repetiu o Processo da Criação, ao escrever conscientemente através da “Metafísica”, que é a doutrina que busca a essência das coisas, que vai além da Física, e que se caracteriza pela investigação das realidades que transcendem a experiência sensível, capaz de fornecer, por meio da reflexão, a natureza primacial do ser, a filosofia primeira. 
     Para demonstrar a Metafísica, Guimarães Rosa lança mão da Dialética de Aristóteles, que se define pelo raciocínio lógico que, embora coerente em seu encadeamento interno, está fundamentado apenas em ideias prováveis, e por esta razão traz em seu âmago a possibilidade de ser “refutado”. A dialética é uma oposição de forças na linguagem, uma tensão gerada por prós e contras, dentro de um mesmo discurso. Esses conceitos serão lentamente compreendidos com o desenvolvimento da análise crítica de seu conto intitulado “DESENREDO” e alvo deste ensaio. 
Primeiramente, façamos a leitura do conto:
   
                                        
                                        DESENREDO


      DO NARRADOR a seus ouvintes: 


       — Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. 
      Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu. 
       Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. 
    Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se.  Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor.   
      Enfim, entenderam-se.  Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. 
     Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de se sete capas.    Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. 
    Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel. 
    Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente.      Esperar era reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano. 
     Até que — deu-se o desmastreio.  O trágico não vem a conta-gotas.  
     Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... 
    Sem mais cá, nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o.   Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo. Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. 
   Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. 
     Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude. 
    Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções. Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? 
   Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso. Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido, mas já medicado. 
   Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio.   Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos.   Daí, de repente, casaram-se. 
     Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse. 
    Sempre vem imprevisível o abominoso?   Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se.   Deu-se a entrada dos demônios. 
     Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. 
     De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. 
   Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino. 
     Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. 
     Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado.      Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. 
     Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. 
     Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.  
     Mais. 
     No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar--se, a progressivo, jeitoso afã. 
     A bonança nada tem a ver com a tempestade.  Crível?   Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — idéia inata. 
    Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. 
    Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois: Disse-se e dizia isso Jó Joaquim.  Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. 
    Demonstrando-o amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente. 
   O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos.  Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho.   Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa? Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. 
      Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta. 
      Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos de reticências, o tempo secou o assunto.       Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro.  O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam.  Jó Joaquim primeiro que todos. Mesmo a mulher, até, por fim.   Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.    Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento. 
      Três vezes passa perto da gente a felicidade.   
     Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida. 
       E pôs-se a fábula em ata. 


                                    

                                          Sobre o Título:

     Em Minas Gerais, terra da qual Guimarães Rosa é filho, emprega-se normalmente a palavra “enredar”, em sentido figurado: — “Enredeira”, por exemplo, refere-se à pessoa que “não” tem o hábito de contar a estória verdadeira, como afirma este provérbio: 
      “Quem conta um conto, aumenta um ponto”, ou seja, enreda, e por analogia subtrativa, “quem diminui um ponto, desenreda um conto”. 
       Em Teoria Literária, porém, “enredo é o ato ou efeito de enredar”; — Resumo dos principais incidentes, ações de um romance, drama, conto, etc.; — Intriga, trama, urdidura/ embaraço, confusão/ episódio complicado, mistério; — Tecido embaraçado como o de uma rede. 
      O Título também evidencia que Jó Joaquim ‘desmente’ a estória verdadeira, pelo acréscimo do prefixo “des”, ao “descaluniá-la”. Entretanto, pela forma contá-la, o Narrador subtrai-lhe novamente o prefixo, e torna a desmenti-lo. Do resultado deste “põe e tira do prefixo”, surge uma das fontes lúdicas e inspiradora do autor, que lembra aquele jogo cantado, feito com caixa de fósforos: - “Escravos de Jó, jogavam caxangá, Tira... põe...deixa ficar...guerreiros com guerreiros fazem zigue zigue, zá!!! Neste jogo, as pessoas vão sendo eliminadas, porque se deixam enlevar pela musicalidade, e terminam por errar o local em que deveriam parar os seus fósforos. 

*Caxangá significa caranguejo, portanto, “jogar caxangá” é como andar para os lados, ou para cá e para lá. Esta expressão “sem mais cá nem mais lá, mediante revólver”... é comparável ao erro do local de parada dos guerreiros de Jó e do ziguezaguear dos amantes e maridos de Vilíria. 

                               

                              A estrutura da Composição 

      Tanto a estória de Desenredo quanto seu desfecho causa surpresa e conflitos de julgamento no leitor, que, ao finalizar a leitura, sente-se completamente desconcertado. A essa incômoda sensação, dá-se o nome de “estranhamento literário”. 
        No caso de Desenredo, este incômodo não é fato acidental, mas proposital, por vários motivos: 
— primeiro, porque a Narrativa é tecida por discurso direto livre, isto é, o Narrador, sem anunciar quem vai falar, mistura sua própria voz e impressões pessoais às falas de Jó Joaquim; 
— segundo, porque o texto não pode ser considerado verossimilhante, (nome que se dá a uma estória que, mesmo sendo inventada, é possível de existir e semelhante ao que é verdadeiro). Isso acontece, porque a narrativa não obedece aos padrões estruturais de tempo, modo e espaço como, posteriormente, será demonstrado; 
— terceiro: — Formalmente, “Desenredo” é como um quebra-cabeças, e pode ser comparado a uma colcha de retalhos linguísticos. Observem que ela foi tecida por “remendados testemunhos de Jó Joaquim”. Um retalho de pano é uma figura geométrica que apresenta o mínimo de três lados; e significa que o conto também tem três ou mais versões. 

                                    
                                 

                                   Sobre a Análise Crítica 

     Bem, como se disse no último parágrafo, “Desenredo” é um quebra- cabeças, portanto, sua análise não será linear, mas feita a partir da desconstrução do texto, por palavras soltas, frases ou expressões completas, que serão descontextualizadas e unidas a outras, para serem recontextualizadas. Por essa razão, peço gentilmente aos leitores que leiam e releiam o conto, antes de continuarem a leitura deste ensaio, para que possam fixar na memória todas as expressões de que ele é composto, caso contrário, sentir-se-ão meio perdidos. 

     A “linha de raciocínio” empregada para unir “os retalhos” será representada por aquele caranguejo, que ao andar para todos os lados, irá nos trazer aspectos como o histórico-literário, o filosófico, o metafísico e o metalinguístico que compõem a tessitura de Desenredo. 

*Metalinguagem é uma das funções da Língua: - quando se explica uma palavra, através de outras, emprega-se essa função. O Dicionário é o melhor exemplo e fonte de metalinguagem. Desenredo também, pois se auto explica.  

   Já se tratou “da linha” que irá unir os retalhos, mas “a agulha” que a conduzirá, andará pelas veredas da Intertextualidadade, ou seja: - quando um autor se reporta a outro, por meio da citação do nome deste outro, de um verso, de uma mesma ideia, de sua concordância ou não com o autor citado, ou, simplesmente com a intenção de homenageá-lo. Enfim, é como um diálogo entre autores. 

     Em 1969, Júlia Kristeva chegou à noção de Intertextualidade e assim a explicou: — “Vem a ser o processo de produtividade do texto literário, cuja absorção e transformação de outros tipos de textos fazem parte ‘deste’ que se está produzindo”. 
    “Isso acontece porque o produtor tem uma visão resultante do processo de leitura de um corpus literário anterior”. “Portanto, o texto é a absorção e a réplica a outro, ou outros textos...”  

      Embora Guimarães Rosa tenha falecido em 1967, e Julia tenha chegado a essa noção em 1969, os Modernistas já se intertextualizavam, inclusive com autores estrangeiros; mas, na época, recebia o nome de “Dialogismo (diálogo entre autores), ou Polifonia (várias vozes dentro do texto)”. Não obstante, a simplicidade da explicação e a nova denominação de “Intertextualidade”, por Júlia Kristeva, foi de grande contribuição, pois, a partir dali, os Teóricos Literários desenvolveram outras e importantes noções. 

     A Intertextualidade de Desenredo salta aos olhos, quando Rosa cita “Ulisses e Aristóteles”, porém, ele não quer citar apenas um ou dois, mas muitos autores com os quais intertextualizou-se, durante toda a sua produção literária.  Ex.: “Não um. Não dois”. 

   Desenredo também apresenta vários tipos de Linguagem como a poética, desenhada, médica, jurídica, matemática, filosófica, além das Figuras de Estilo como Silogismos e Metáforas; e Figuras de Pensamento, como a Ironia, a Antítese, a Comparação, etc., e farão parte desta análise. 

     Quem teve a felicidade de entrar em contato com as obras de Guimarães Rosa, sabe que, para esse autor, “pingo realmente é letra”; e a leitura de Desenredo não pode ser superficial, já que a polissemia de leituras oferecidas pelo texto exige cuidadosa análise das partes de sua composição. Por isso, é importante repetir o que disse Donaldo Shüler sobre a linguagem de Guimarães Rosa: 
      — “A primeira experiência estranha do leitor que se aventura a Guimarães Rosa é a linguagem”: -     Ele não obedece ao sistema dos bem falantes nem reproduz o falar do “sertão”. Sente-se autorizado a criar, em certa medida, o seu próprio instrumento linguístico. O resultado afasta o leitor habituado a disparar pelas linhas, numa leitura rigorosamente linear, sem penetrar no subsolo da palavra, sem indagar de outras camadas além daquela que lhe descortina a “estória”. 
     A literatura de Guimarães Rosa não é endereçada a leitores apressados, nem se rende a quem está interessado em conquistá-la. “Não lê Guimarães Rosa quem não o lê palavra por palavra e não o relê depois de o já ter lido com todo o vagar”. * “Este pequeno trecho, foi retirado de um longo e magnífico artigo, publicado em “O Correio da Manhã”, R.J, 30 de dez. 1967, e em “O Correio do Povo”, Porto Alegre, 23 de maio de 1965”. 

      Uma vez esclarecida a fonte lúdica e os dois primeiros processos da composição de “Desenredo”; sendo o primeiro, a forma de retalhos linguísticos da narrativa, e o segundo, pelos caminhos da Intertextualidade, “depara-se com outro:” — que é o dilema de encontrar o “retalho” que deu início ao “quebra-cabeças” e que parece ser este: “O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima”. 

      Primeiramente, é preciso verificar as imagens produzidas por essa expressão, pois o Narrador fala de “uma árvore”, e imediatamente a imaginamos.  Porém, um décimo de segundo depois, ele a desnuda, deixando-nos, apenas, com a visão de um “tronco”. Esse é um dos vários fenômenos da linguagem de Desenredo, e causa diplopia no leitor (visão dupla ou borrada), pela velocidade com que a imagem da “árvore” é feita e desfeita. 
      Pode-se entender essa imagem como “um flash da árvore do discurso” de Padre Antônio Vieira, considerado o maior Orador Sacro da História Portuguesa. Sua obra prende-se à parenética, arte de convencer, por meio de longos raciocínios, cuja estrutura de pensamentos é extremamente poderosa, difícil de ser destruída, e cujo estilo reflete as características Barrocas do século XVII.  

     A leitura do belíssimo “Sermão da Sexagésima” é indispensável para que se compreenda como Padre Vieira materializou o discurso, na plenitude e beleza de uma frondosa árvore; para, só então, ser compreendida a “decomposição de Desenredo”, em forma de “contraditório rascunho”.

                                  
                                    Sermão da Sexagésima 

     “Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. 
   Há de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há de concorrer Deus com a graça, alumiando. 
    Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver, por falta de olhos; Se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. 
      Que coisa é a conversão da alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. 
      Ora, suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender a falta?  Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? . . . . . . . . . . 
       Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer as dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, e o que não é isto, é falar de mais alto.
      Não nego nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar a acabar nela.  (grifos meus).
      Quereis ver tudo isto com os olhos? 
     Ora vede: uma árvore tem raízes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar de uma só matéria; deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos na mesma matéria e continuados nela; estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. 
      Há de ter esta árvore varas, que são a repressão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto e o fim a que se deve ordenar o sermão. 
      De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são marralhavas. Se tudo são folhas, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser; porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, a que podemos chamar de “árvore da vida”, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: “Seminare semen”. 
      Eis aqui como hão de ser os sermões, eis aqui como não são. 
      "E assim não é muito que não se faça fruto com eles.” 

*Neste Sermão, Padre Antônio Vieira ataca os religiosos dominicanos, em particular, Frei Domingos de São Tomás, cuja Oratória rebuscada e dispersiva não deixava ver a frutificação do Evangelho. 

    Como se viu, a arte do discurso de Padre Vieira funda-se nas raízes da extremada clareza e da lógica; e a de Guimarães, no fruto de uma linguagem analógica. Com o prosseguimento da análise, tornar-se-á bem mais evidente a desmontagem do discurso da “árvore” de Vieira, por Guimarães Rosa. 

                  
                          Análise do subtítulo de Desenredo 

        DO NARRADOR a seus ouvintes: 

    O subtítulo, quando existe, tem a finalidade de explicar o título da obra. Esse, em particular, esclarece que a narrativa é oral, pois há “ouvintes”, além de o Narrador fazer questão de marcar sua presença, grafando-se por maiúsculas. Portanto, o leitor de Desenredo está sendo convidado a ouvir, e não a ler a estória que lhe será contada sobre Jó Joaquim. Mas para isso, deve-se imaginar diante do Narrador, e tentar não só visualizá-lo, como a todo o gestual que integra a oralidade. Caso contrário, será enganado pelos próprios sentidos, pois a imagem do “Narrador-falante” esconde-se sob o texto escrito que se tem em mãos. 
    Destacar a diferença entre o texto oral e o escrito é muito importante, porque essa narrativa também está sob a mira de lentes divergentes; e é preciso convergir o foco para se chegar à verdade dos fatos. 
      Deve-se iniciar a conversão pelo leitor, que de agora em diante passará a ser “leitor-ouvinte”, por que a autora deste ensaio já está, e continuará a lhe dirigir a palavra; e ouvinte, por “ouvir o Narrador de Desenredo”. 


                                       Análise do Texto 

    “Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como cheiro de cerveja.”  Tal comparação só pode causar perplexidade. Mas há dois modos de entendê-la: irônica e sinestesicamente. 
      A Sinestesia é como uma mistura de cores, odores e sabores empregada na linguagem poética; e tem a função de anestesiar a mente, ou melhor, os sentidos da pessoa. 
     Ao misturar “a bondade com o odor de cerveja”, o ouvinte fica com a mente meio embotada, e tenta entendê-la poeticamente, mas, na verdade, não a compreende, pois falta o parâmetro comparativo e necessário para que se estabeleça uma comparação. 
     Nessa construção, não só houve uma Sinestesia, como um Silogismo Inconcluso.  Entretanto é possível resgatá-lo e completar seu raciocínio. 
     — Partindo-se da premissa maior, que é ter “o bom senso” para saber que “bom” é o odor do vinho, e que o de cerveja é ruim; mas até pode ser bom, se for comparado ao fedor da cachaça, chega-se a uma menor: — Se o Narrador achava Jó Joaquim “bom como cheiro de cerveja”: ou Jó Joaquim não era tão bom, ou o Narrador nunca sentiu o odor do vinho, e deveria ser desprovido do específico “bom senso”. 

     Quanto a Jó Joaquim ser “cliente”, cabe a pergunta: — de quem ele o era? 
 Bem, pelos termos jurídicos encontrados no conto, o Narrador era advogado, frequentava o mesmo local de boêmia de Jó Joaquim, e deve ter oferecido seus préstimos profissionais a ele. 
    Como ganhara a causa, devido a “certo depoimento genial de Jó Joaquim”, iniciou a narrativa, brindando a vitória. Mas, de brinde em brinde, e já sinestesiado, o Narrador provavelmente interpolou as orações: Em vez de afirmar que Jó Joaquim era “bom como cliente”; disse que ele “era bom como cheiro de cerveja”. 

    Essa comparação inusitada leva-nos ao início do processo de Intertextualidade com o grande especialista em provocar sinestesias, o poeta francês, Simbolista e Impressionista, Charles Boudelaire, que diluía a realidade em copos de vinho, como um nefelibata (pessoa que vive com a cabeça nas nuvens). 
      O título de sua poesia que ilustra brilhantemente esse conceito é “Enivrez-vous”. Em português, 

                                     Embriagai-vos

É preciso estar sempre ébrio. 
Tudo está em seus devidos lugares. 
Esta é a questão. 
Para não sentirdes o fardo do tempo que sopra vossas costas 
E vos dobra rumo a terra, 
é preciso que estejais Embriagados, sem trégua. 
Mas de que?  De vinho, de poesia ou de virtudes, 
à vossa vontade. Mas embriagai-vos. 


       “Tinha o para não ser célebre” 

    Para facilitar a compreensão dessa expressão, deve-se substituir o “o” por (alguma coisa). 
    Se Jó Joaquim tinha (“alguma coisa para não ser célebre”); significa que ele terminou sendo. Linhas mais à frente, encontra-se uma importante informação sobre Jó Joaquim, que demonstra sua personalidade de forma invertida: -“triste, pois que tão calado”. Isto significa que, normalmente, ele era uma pessoa muito alegre e falante. Então, a informação inicial sobre Jó Joaquim “ser quieto e respeitado” é meio contraditória. 
    Ele só “era quieto” quando estava triste, e se um dia chegou a ser “respeitado”, deve ter sido bem antes de adquirir o vício da bebida e de conhecer a futura esposa. Mas o que será que faltava a Jó Joaquim para ser célebre? — Modéstia certamente não era, já que se declarou “inédito poeta e homem”. 
    Mais à frente, vai-se constatar que ele não possuía recursos financeiros, e julgava que essa sua condição o impedia de publicar e de divulgar suas obras literárias. Pensando assim, percebe-se que Jó Joaquim era desprovido de “bom senso”, pois pobreza não pode medir qualidade literária; e de “bom gosto” também, porque se embriagava com cerveja, e segundo “Boudelaire e o público pensamento”, bom é o sabor, a cor e o odor do vinho que, desde a antiguidade, foi e continua sendo verdadeiro néctar dos deuses. 

   A análise das informações sobre Jó Joaquim trouxeram à luz algumas características de sua personalidade, e o início do Realismo em Portugal (1865), com a famosa Questão Coimbrã, uma polêmica travada entre os jovens estudantes de Coimbra e o poeta Romântico Antônio Feliciano de Castilho, que posfaciou o “Poema da Mocidade” de Pinheiro Chagas, e o criticou veementemente pelas novas ideias... Neste mesmo ano, Antero de Quental, líder dos jovens, publica “Odes Modernas” e Castilho, com nova crítica, reafirma a falta de experiência e de visão dos jovens poetas. 
     Antero revida, através de um opúsculo, em forma de carta, dirigido ao Romântico, conhecida pelo nome de “BOM SENSO e BOM GÔSTO”, na qual nega os valores do “velho poeta” e “o insulta”. (Observem que o insulto já começa por V.Exª., que deve ser grafado com iniciais maiúsculas; e não em minúsculas, como ele empregou = v.exª. 
 É imperdível a leitura da “Carta” que põe fim ao Romantismo, e dá início ao Realismo, em Portugal. 

“Carta ao Excelentíssimo Senhor Antônio Feliciano de Castilho”. 

Exmo. Sr. — Acabo de ler um escrito de v.exª., onde, a propósito de faltas de bom-senso e de bom-gôsto, se fala com áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes ilustres se cita o meu, quase desconhecido e sobretudo desambicioso. (...) O que se ataca na escola de Coimbra — talvez mesmo v.exª. o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes — , o que se ataca não é uma opinião literária menos provada, uma concepção poética mais atrevida, um estilo ou uma idéia. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se à independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. 
A guerra faz-se ao escândalo inaudito duma literatura desaforada que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais. A guerra faz-se à impiedade dos hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices; porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu nas frontes o sinal da infabilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser responsável por seus atos e palavras... Agora, quem move estes ridículos combates de frases é a vaidade ferina dos mestres e dos pontífices; é o espírito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que cuida que a forçam — nós só lhe queremos puxar a orelhas! Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua retidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem às virtudes de respeito humilde às vaidades, de submissão estúpida, de baixeza e pequenez moral e intelectual. (...) Não é traduzindo os velhos poetas sensualistas da Grécia e de Roma, requentando fábulas insossas diluídas em milhares de versos sensabores; não é com idílios grotescos sem expressão nem originalidade, com alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós; com frases e sentimentos postiços de acadêmicos e retórico, com visualidades infantis e puerilidades estonteantes, com banalidades; com ninharias; não é sobretudo, lisonjeando o mau gosto e as péssimas idéias das maiorias, indo atrás delas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as idéias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa para se reformar como a uma fogueira a que a lenha vai faltando. 
Mas fora de tudo isto, destas necedades tradicionais é o nevoeiro, é o metafísico, é o intangível — diz v.exª.  Todavia, quem sabe e pensa hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim.  Não é a nossa divertida Academia de Ciências que resolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos fatos e das idéias. É o Instituto de França, é a Academia Científica de Berlim, são as escolas de filosofia, de história, de matemática, de física, de biologia, de todas as ciências e de todas as artes, em França, Inglaterra, em Alemanha. Pois bem: A Alemanha, a Inglaterra, a França, comprazem-se no nevoeiro, são incompreensíveis e ridículas diante da crítica fradesca do Sr. Castilho. Os grandes gênios modernos são grotescos e desprezíveis aos olhos baços do banal metrificador português. O grande espírito filosófico do nosso tempo, a grande ceação original, imensa da nossa idade, não passa de confusão e embróglio desprezível para o professor de ninharias, que cuida que se fustiga Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet, Proudhon, Littré, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Büchner, Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a história, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, o espírito mesmo da nossa civilização (...) Paro aqui, exmo sr.. Muito tinha eu ainda que dizer: mas temo, que no ardor de discursos, faltar ao respeito a v.exª., aos seus cabelos brancos. 
Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra frase não tão reverente e tão lisonjeira como eu desejara(...) 
Levanto-me quando os cabelos brancos de v.exª. passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas que saem dele não me merecem nem admiração, nem respeito, nem ainda estima. 
A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. v.exª. precisa menos cinqüenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão. É por estes motivos todos que lamento do fundo da alma não me poder confessar, como desejava, de v.exa. Nem admirador nem respeitador 

          Antero de Quental Coimbra, 2 de novembro de 1856. 

        *A ortografia original da Carta também foi respeitada. 

      O espírito da Escola Realista já nasceu contra as ideias da anterior, a do Romantismo. Esse fato é “histórico e reincidente”, pois uma Escola Literária só se funda ao impor novas ideias. 
      E o Modernismo, fundado em 1922, com a Semana de Arte Moderna, que sucedeu o Realismo, apesar de ter absorvido “as imensas criações da alma moderna, o espírito mesmo daquela civilização”, fez pior: uma contrarrevolução, tão profunda no plano linguístico, que “Jó Joaquim sentiu-se quase criminoso”, porque “histórico e reincidente” ele já o era. Afinal, Guimarães Rosa nasceu em 1908, praticamente no final do Realismo, e “tinha tudo para não ser revolucionário”, pois era extremamente religioso, voltado para as letras, e como Diplomata, um grande pacificador. Mas como escritor, dotado de uma inteligência capaz de compreender a Metafísica, a ponto de repetir o processo da criação, não houve meios de ele se conter: “E tendo a causa (a compreensão Metafísica) por justa e averiguada, celebrava-a ufanático” (fez a maior revolução linguística da história da Literatura Brasileira). 

         *Guimarães Rosa foi e continua sendo considerado o maior Estilista da Literatura Brasileira. 

        “Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir e Eva nascer”.  
       O aspecto denotativo da expressão demonstra a esperteza das mulheres sobre a dos homens; mas sua conotação é bem mais ampla: - aponta para a Sagrada Escritura e para seus dois Arquétipos, ou símbolos máximos da pureza, antes de a perderem, por culpa de “uma sedutora serpente”. 
      Por enquanto, fica-se com esta conclusão: a serpente era mais esperta que Eva; que era mais esperta que Adão... 

       “Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu”. 

      Pergunta-se aos leitores, já que é tão difícil de ler os nomes se, por acaso, não tropeçaram na pronúncia do terceiro e disseram Irvilha, e exclamaram: “mas parece Ervilha!” 
     Esses estranhos nomes são criações, “neologismos” de Guimarães Rosa, ou seja, são palavras novas, porém formadas de radicais pré-existentes. 
       Os “nomes” também formam um Anagrama, e como não se sabe por qual deles devemos chamá-la, fica-se com a seguinte opção: — Separa-se a sílaba “Vi” dos três nomes, e sempre sobrará Líria, que assim será chamada, daqui em diante. 
       A opção foi feita, porque ao final da Narrativa, a moça recebe um quarto nome, que se inicia pela sílaba que foi separada = “Vi” de Vilíria”. 

   O Narrador poderia ter-se referido a Líria por denominações mais específicas, que a personificassem, como por exemplo, estas: “a jovem que”, ou “a moça que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu”.  Mas ele as omitiu, porque sua intenção era mesmo a de reificar Líria, isto é, de emprestar-lhe o aspecto “de coisa”, ou “de animal”.  E sendo assim, chega-se facilmente à conclusão:Líria não era gente, mas serpente, cobra-cascavel, espécie venenosa. 

    Os nomes dessa moça representam “as três faces”, ou “trocas de pele”, com as quais Líria “aparecia” a cada um: — Ao primeiro marido, cobra-cascavel; ao amante assassinado, víbora sem ninho; e a Jó Joaquim, “inédito poeta e homem”, serpente sedutora, pois, para a alma de um poeta, uma simples palavra pode ser muito sedutora. 

*No Trovadorismo, séculos XII e XIII, a estrofe de um poema recebia o nome de “cobra, cobla ou talho”. (três nomes).

      Como, por enquanto, está-se tratando da parte histórico-literária e poética da Narrativa, Líria deve ser compreendida como ser e corpo poético. Por esse motivo, ela não foi totalmente personificada, e nasceu igualmente à palavra-poética: foi fundada no instante de sua nomeação, e passou “a ser sedutora”, porque desencadeou o fazer poético de Jó Joaquim. O leitor-ouvinte pode sondar sua mente, e verificar que a imagem de Líria que impressiona seus sentidos é meio nebulosa; não se forma por completo,  diferentemente das imagens de Jó Joaquim que, de tão real, podemos vê-lo em diferentes ângulos, movimentos e aspectos: “em decúbito dorsal”, “triste”, “calado”, “retraído”, “surpreso”, “inebriado”, “em lágrimas”, e até “ufanático” (falando e gesticulando demasiadamente). 
      Ao “aparecer com os nomes da moça”, o autor também desencadeou o nosso fazer poético, com a força de sua consciência Metafísica, e nos levou a chamá-la de “Irvilha”, pela semelhança sonora do final dos dois primeiros nomes.  É como a brincadeira fonética do trava-língua, ou troca letras: “Um tigre, dois tigres, três tigres”. 
      Isso serve para nos demonstrar que, “de poeta e de louco, todo mundo tem um pouco”.  Quem já não se apanhou compondo versos, trocando letras ou fazendo rimas? Para lançar a semente poética e sedutora serpente, Guimarães Rosa “arou nossa mente”, pois disse que “é de notar que o ar vem do ar”, ou seja, devemos respirar o ar do mesmo lugar em que ele respira.  Este vem a ser o “ar” do lugar das Academias de Filosofia, de Letras, de Matemática, de Química e de Física, ou seja, o ar da Metafísica, cujo panorama foi muito bem descrito por Antero de Quental, em carta dirigida a Antônio Feliciano de Castilho. 

      Falemos um pouquinho sobre a formação da palavra-poética. Guimarães Rosa, em entrevista dada a Lorenz, num Congresso Latino-Americano realizado em Gênova, em janeiro de 1965, disse que, “Cada palavra é, segundo sua essência, um poema. Pense só em sua gênese”. Entretanto, depois de fundada, a palavra começa a sofrer desgaste e passa a ser comum. Mas a alma de um poeta trabalha no sentido de renová-la, e a “veste, reveste e traveste”, para extrair-lhe novas conotações; imprimir-lhe ritmos, rimas, ecos, métrica, além de empregar todos os demais recursos de que dispõe a linguagem, e que todos os livros que tratam deste assunto, conceituam como poesia. Mas esta não é a intenção deste ensaio, mesmo porque, como disse o Narrador, “o tempo secou o assunto”. Vamos viver a poesia paralelamente ao desenvolvimento da análise, “a conta-gotas”. 

     Bem, como fomos arrastados para dentro do grande jogo, que é a leitura de Desenredo, significa que a participação dos leitores deve ser totalmente ativa. E por dever ser, emendo-me, por Paráfrase, ao Sermão de Padre Vieira, para lhes explicar como Guimarães Rosa exige o máximo de seu leitor-ouvinte, e o considera um “jogador oponente”, pois ele “há de concorrer com olhos de viva mosca”, para enxergar a plasticidade do conto; “com o abrir e não fechar de ouvidos”, para escutar todas as vozes do texto; “com a astúcia dos advogados”, para advogar contra ou a favor de Jó Joaquim e, principalmente, “com a alma de um poeta”, para compreender a dimensão do viver poético.  Portanto, a atividade intertextual de Desenredo não se dá somente entre G. Rosa e os grandes filósofos e escritores de todos os tempos e de todas as Escolas Literárias; mas é extensivo aos leitores, ao se tornarem presentes e ouvintes. 

       Neste trecho: “Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade, idéia inata”, o autor expressa seu desejo de que a interatividade aconteça; mas por saber da grande dificuldade de seus leitores em captá-la, diz: “Dependiam eles de enorme milagre: O inebriado engano”. 
     O primeiro engano do leitor se dá quando ele começa a ler o conto, e não percebe que é para “ouvi-lo”; o segundo é quando ele recebe um alerta sobre a inocência de Adão, e continua a leitura inocentemente; O terceiro é pelo fato de o leitor já estar sinestesiado pelas primeiras informações sobre Jó Joaquim, e ter dificuldades para ler o Anagrama formado pelos nomes da moça. 
      E ao pronunciar o último deles erradamente, nem percebe que já foi arrastado para dentro do conto, pelo jogo de “troca-letras”. 
     E não são apenas dois ou três enganos cometidos pelo leitor, mas todos os possíveis e imagináveis, já que a Narrativa toda é um “grude de engodos”. E Guimarães Rosa põe-se a esperar pacientemente que o leitor descubra que está sendo enganado, e diz: “enquanto, ora, as coisas amaduravam”. Porém, “esperar era reconhecer-se incompleto”, ou tão incompleto quanto o Sermão, “pela falta de um dos três concursos: por parte de Deus, do pregador ou do ouvinte”... 

      Por parte do autor não foi, pois fundou a Narrativa nas raízes do Evangelho, já que citou Adão e Eva.  Depois, “apareceu com os nomes da moça”, quer dizer, inventou-os, pois eles não existiam.    Esses nomes, segundo seu conceito sobre a fundação da palavra, “são poemas”, sementes poéticas, que germinaram, e nos arrastaram para dentro de Desenredo. E quando “germinaram”, disse o Narrador: “Pois, produziu efeito”. “Surtiu bem”, que corresponde a “Seminare semen, do Sermão”. 

      Naquele trecho, em que Jó Joaquim diz: “Haja o absoluto amar e qualquer causa se irrefuta”; ele está declarando o tamanho de seu amor por Líria, mas sabemos que esse amor só pode ser o primeiro dos Dez Mandamentos: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. “Os demais, portanto, são amores clandestinos”.  
     Os leitores deste ensaio logicamente já perceberam minha paixão pelos textos de Guimarães Rosa, e apesar desse autor ser muito difícil de ser compreendido, existe uma infinidade de bons leitores, que costumam se apaixonar pelos textos dele. 
       Mas é preciso muito mais do que uma paixão; é preciso viver com ele “um amor clandestino”.   É exatamente isto o que Guimarães Rosa deseja de seus leitores-ouvintes: — que realizemos este minucioso trabalho, e tornemos a enredar tudo o que Jó Joaquim desenredou, pois só um amor desse tipo, é capaz  “de voar o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento”. 
      E depois de vivê-lo, teremos de saber esperar “pacientemente” por alguém que leia Desenredo, ou este ensaio, “para dar-se novo desmastreio: com outro" e, juntos, “convolados”, viveremos “um novo amor clandestino”. 

      Mas, retornando-se ao ponto em que ele disse: “esperar era reconhecer-se incompleto”, viu-se que não foi por falta do concurso do autor, e que ele sabe que o ouvinte de Desenredo é tão inocente quanto Adão.  Então, como última tentativa de despertá-lo (para ver Eva nascer), Guimarães Rosa envia-lhe um raio de luz: o mesmo em que “há de concorrer Deus, com a graça, alumiando”, e diz: — “Três vezes passa perto da gente a felicidade”
    Atônito, o leitor-ouvinte para de ler, e se pergunta: - Mas que felicidade é essa? - só houve “traições, mortes sofrimento e lágrimas”. 
    Neste momento da pausa, o leitor-ouvinte começa a procurar por onde passou “três vezes a felicidade”, bem debaixo de seu nariz, e ele só viu passar uma? A pausa feita pelo leitor-ouvinte é útil e necessária para nos deleitarmos novamente, com o lindo poema de Boudelaire, 
                                       
   “Enivrez-vous” 

    Embriagai-vos 
    É preciso estar sempre ébrio. 
    Tudo está em seus devidos lugares. Esta é a questão. 
    Para não sentirdes o horrível fardo do tempo 
    que sopra vossas costas e vos dobra rumo a terra, 
    é preciso que estejais Embriagados, sem trégua. 
    Mas de que? 
    De vinho, de poesia ou de virtudes, 
    à vossa vontade. Mas embriagai-vos. 

    Vejam como é importante a releitura de um poema, pois é certo que “da vez” (=da primeira) que vocês o leram, não lhe acharam a menor graça, e permaneceram com a taça de vinho que lhes foi ofertada, nas mãos. 
    Guimarães Rosa também já nos sinestesiou com “comparações, poesias e virtudes”; mas “é preciso estarmos embriagados, sem trégua”, para continuarmos a compreender como foi que ele retirou da Narrativa “o fardo que dobra nossas costas”, ou seja, como foi que ele retirou “tudo de seus devidos lugares”, declaradamente cobertos por sete capas, e nada vimos? 
    Disse-o bem Padre Vieira: “Quereis ver tudo isso com os olhos? — Ora vedes: uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos”. (total de sete). 
     Como em Desenredo só sobrou “o tronco principal”; e são sete os componentes da árvore, tiveram de ser “cobertos de sete capas”. 
     E para vê-los, só nos falta beber mais esta taça de “vinho”, e... tim! tim! ... brindemos a vitória, pois agora já estamos, e quanto mais estivermos embriagados, melhor para entendermos Guimarães Rosa. 
      O real motivo pelo qual devemos estar assim, é por que um ébrio vê um objeto aqui, e torna a vê-lo ali. Suas imagens são duplicadas. Ele vê uma coisa e pensa que é outra. Sente dificuldades para falar, ler e pronunciar as palavras. Além disso, o ébrio tem falhas de memória. Às vezes, nem consegue se lembrar do que falou, fez, viu ou ouviu. Também vê o mundo girar. Enfim, todos os fenômenos que se dão com um ébrio, devem igualmente acontecer aos ouvintes de Desenredo: o fato de verem as coisas, através de lentes divergentes. 
     Não se teve dificuldades para ler e pronunciar os nomes da moça? As imagens de Líria não são nebulosas e triplicadas? Também não se fica com a visão dupla ou borrada, pelo flash da árvore do Sermão?  Por tudo isso, disse Guimarães Rosa: “sábio mesmo, foi Ulisses, que começou por se fazer de louco”. 
    A única pessoa que teve de se manter lúcida, e em pleno uso de suas faculdades mentais, para escrever Desenredo, “contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou”, foi Guimarães Rosa, por que “loucos” somos nós que, “de amor”, nos propomos a interpretá-lo.  Aliás, renomados críticos o colocaram na categoria dos gênios, mas igualmente a Antero de Quental, Guimarães Rosa, antes de ser bem compreendido, também sofreu críticas negativas, e houve até quem o chamasse de “louco”. 
     Na verdade, sua linguagem era inédita, e de louco, como se está vendo, ele nada tinha. Mesmo assim, “como inédito poeta e homem, sentiu-se quase criminoso, reincidente”: - decompôs o belíssimo discurso de Padre Vieira, que todos diziam ser indestrutível, e demonstrou que o “Sermão da Sexagésima” também “ tinha o para não ser”, ou seja, “tinha alguma coisa para ser destrutível”. 
Vejam o que era: O discurso vinha sendo composto de modo totalmente afirmativo, amarrado nó a nó, quando de repente, disse Vieira: “Não nego nem quero dizer que o Sermão não haja de ter variedade de discursos” ... 
      Este é o momento em que Padre Antônio Vieira “abre a guarda”, quebra a coesão da própria lógica discursiva, por revelar, através de três expressões negativas, sua incerteza a respeito do que gostaria de poder continuar afirmando. O Padre começou a montagem de sua árvore, afirmativamente, pelas raízes, e pretendia continuar a subida, para terminá-la nos frutos. Porém, afrouxou e inverteu o discurso (do modo afirmativo para o negativo), e ao ficar de cabeça para baixo, soltou-se, deixando cair “um feixe de varas” (= a repressão dos vícios) diante de Guimarães Rosa, “que era cão mestre em idéia ligeira: abocanhou-a e rastreou essa por fundo de todos os matos, amém”. 
       Mas antes da pausa, o atônito leitor-ouvinte procurava pelas três passagens da felicidade: 
    - A primeira, em que “desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade”, foi quando Guimarães Rosa deparou-se com “o inebriado engano de Padre Vieira, ao ter invertido, e afrouxado o discurso”;  
        A segunda é esta: “Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse”. 
      Já que estão todos ébrios, provavelmente não ouviram a pergunta feita ao Narrador que gerou a resposta acima, mas foi esta: — De que forma foram felizes? — De três formas: eruditamente, cientificamente ou popularmente. 
     Se o leitor não o entender de uma forma, há de entendê-lo por outra, ou seja, se não teve a felicidade de ler o Sermão da Sexagésima, ainda pode assimilar o texto de forma rasa, popular, através dos ditos e da popularidade dos Arquétipos de Adão e Eva. Até mesmo ateu, ao ler Desenredo, meio à toa ou “por que forma for”, poderá entendê-lo. Afinal, se ele o lê, é porque o código linguístico é o mesmo. 
       Então, a expressão “Três vezes passa perto da gente a felicidade”, a princípio, seria o anúncio do fechamento do conto; mas, na realidade, é uma abertura, por onde Guimarães Rosa se infiltra na mente do leitor, despertando-lhe dúvidas a respeito da felicidade, para que ele o releia. 

     Para realizar esse processo, G.Rosa veio tecendo nas profundezas da nossa alma, “sutil como uma colher de chá”, “pingando, a conta-gotas,” os seis pontos de interrogação, com os quais teceu Desenredo: um aqui, outro ali, outro acolá, como a regar nossa mente, para germinar as sementes da felicidade. E consegue, já que a sétima interrogação, “coberta de sete capas”, desta vez, é exatamente o auto questionamento do leitor, gerado pela expressão ora analisada. E, “sem mais cá, nem mais lá”, ou seja, sem que o leitor perceba o fato, ele já está interagindo com o texto, e chega ao momento mágico de sua transcendência para dentro do conto, chamado de epifania, ou momento em que, finalmente, “dá-se o primeiro Desmastreio”. 
      O universo Rosiano é a recriação do Divino: com seis dias de trabalho (seis interrogações) e um de descanso (o sétimo dia), e que representa a pausa feita pelo leitor, para pensar na felicidade. E já que o dia é de descanso, ele tem tempo para recomeçar a ler o conto, por quantas vezes desejar, ou preciso for. 
      Certo mesmo, é terem o conto praticamente decorado, para acompanharem a análise, sem se perderem. Assim, o leitor-ouvinte pensa que chegou ao final da Narrativa, mas na verdade, está chegando ao começo de seu entendimento, através das dúvidas, razão pela qual retorna ao caminho das pedras, já que as formas (erudita, científica e popular) se entrelaçam em forma de Silogismo encadeado, definido como uma sucessão de juízos articulados, de maneira que o segundo explica o primeiro, o terceiro o segundo, o quarto o terceiro, etc... 
      Como se vê, todo o conto é um grande Silogismo Encadeado, como o próprio universo real que, a cada dia, e em mote contínuo, compreende-se dele, um pouco mais... 
     Comecemos a andar por este caminho, pelo poema de Carlos Drummond de Andrade, o grande poeta brasileiro, em seu poema intitulado “No meio do caminho”, que se refere às limitações que a própria língua impõe, gramaticalmente falando, ao seu desejo de se expressar, em linguagem poética. 

       “No meio do caminho tinha uma pedra 
        tinha uma pedra no meio do caminho 
        tinha uma pedra 
        no meio do caminho tinha uma pedra. 

        Nunca me esquecerei desse acontecimento 
        Na vida de minhas retinas tão fatigadas. 
        Nunca me esquecerei que no meio do caminho 
        tinha uma pedra". 

       Comecemos, pela forma popular, a entender como “Três vezes passa perto da gente a felicidade”: 

      Essa expressão realmente ilumina a mente do leitor-ouvinte, mas como se fosse a luz de um raio, pois desencadeia a tempestade de dúvidas que lhe surgem, e no ato, e de forma popular, se pergunta: — Mas que raio de felicidade é esta? — Como Jó Joaquim pode ser tão inocente, ou tão bonzinho, a ponto de não ver que não deve se convolar com moça pós-graduada na arte de trair? 

*(o leitor já está desconfiado da “bondade” de Jó Joaquim por ele ter ficado feliz com a morte do marido de Líria, e isso demonstra que ele “pode não ser tão bonzinho)”. 

       — Ou será que ele próprio, o leitor, perdeu a noção de felicidade? a pior das hipóteses é a de que ele não entendeu o conto. Não obstante, o conto é metalinguístico, se auto explica: tanto a “forma”, quanto a “fórmula” foram literalmente dadas aos leitores: “É contrária ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou”, e a demonstra através do dito que foi desdito: “A bonança nada tem a ver com a tempestade”, ou seja, a felicidade a que ele se refere nada tem a ver com a do casal; mas com a do autor, pois o leitor já interage, através das dúvidas... Este é um momento decisivo: — ou o leitor lê e relê o conto, ou o abandona, já que “todo abismo é navegável a barquinhos de papel” ( atira o conto pela janela). 
      Se optar pelo abandono, será considerado por Guimarães Rosa como “mais um dos leitores azarados fugitivos” que, igualmente ao primeiro marido de Líria, “morreu afogado (na tempestade de dúvidas), ou de Tifo.” 
      — Por quê “afogado ou de tifo”? —Porque contém a mesma ideia deste outro dito popular: “Morreu, tá morto; Largou, tá largado”. Ora, se mesmo cheio de dúvidas, o conto morreu naquele instante para o leitor; da mesma forma, ele morreu para Guimarães Rosa, ou seja, o “leitor fugitivo” também não ficará sabendo de que forma morreu o marido... 
      Mas os esforços do autor, para que isso não viesse a acontecer, não foram poucos, pois “Jó Joaquim proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude” (a de um morrer para o outro, e junto com os dois toda a magnitude do que ele gostaria de nos transmitir).

       Guimarães Rosa não só “concorreu com a luz” (com o raio), mas “com o espelho” (que são as dúvidas). Basta que o leitor “tenha olhos para ver-se a si mesmo”. 
        Há uma segunda leitura sobre esta expressão: “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; ou seja, não é navegável a pessoas: Se pular, morre! 
       Esse foi o caso da Esfinge, criatura mitológica, encontrada nas Lendas do Egito, da Assíria e da Grécia. Tinha o corpo de um leão alado, e cabeça de mulher. Existem réplicas da Esfinge, que a mostram como mulher, mas com patas e as garras de leão, uma cauda meio enrolada, em forma de serpente, e asas de águia. Até hoje ela existe. 
       Mas sendo da primeira, ou da segunda forma, a Esfinge era a guardiã do lugar em que estava, e uma grande criadora de enigmas. Seu enigma mais famoso foi este: “Decifra-me ou te devoro”; e quem desejasse passar por ela, primeiramente, teria de responder a esta questão: “O que anda de quatro, ao amanhecer, de dois ao meio-dia, e de três ao anoitecer”? 
        Édipo foi o único que conseguiu lhe dar a resposta: a humanidade. 
       “Anda-se de quatro, quando bebês, de dois, quando adultos e de três, quando velhos, pela ajuda da bengala”. 
       “Ao ter seu enigma solucionado, a Esfinge suicidou-se, lançando-se num abismo”. Assim reza a lenda... Mas penso que também houve “certo engano” a respeito “desse suicídio”, pelo seguinte: - Se ela tinha cabeça de gente, é porque precisava dela para pensar e produzir enigmas. E como ela era guardiã do lugar, seu corpo foi esculpido como o de um leão, já que esse animal é considerado o mais forte e o mais feroz “guardador de lugares, isto é, de seu território.” 
       Porém, a Esfinge também carregava o enigma de sua própria conformação física, pois “tinha asas”; e ao ter seu “território tomado por Édipo”, cedeu-lhe o lugar, saiu em disparada, e lançou-se “no abismo”, achando que poderia voar, como uma águia, mas seu peso era o de um leão. Pulou, morreu! 
      A Esfinge representa “os embustes da lenda, à qual Jó Joaquim se reportou”, ou seja, ela também é a guardiã dos enigmas de Desenredo. Se não os desvendarmos, seremos devorados pelo texto.       
      Quanto a “Jó Joaquim proibir-se de ser pseudopersonagem em lance de tão vermelha e preta amplitude”, foi a forma pela qual Guimarães Rosa intertextualizou-se com a espetacular obra do francês Stendhal, publicada em 1830, intitulada “O Vermelho e o Negro”, que foi considerado o primeiro romance Realista Naturalista, embora carregado de sensibilidade romântica. 

        Julien Sorel, jovem, lindo, inteligentíssimo, mas pobre, estava em dúvida se escolhia “a farda” ou “o sacerdócio” para fugir à pobreza e ascender socialmente. Escolheu o último. Apesar de se tornar padre, formou dois triângulos amorosos: - O primeiro, com a esposa de seu patrão, Sra. de Rênal, para cujos filhos dava aula; e o segundo, com Mathilde de La Mole, moça rica, solteira, cheia de pretendentes, que gostava dele, mas não o aceitava, por ele pertencer a uma classe social inferior à sua mesma. Quando finalmente ele conquistou Mathilde, ficou sabendo que a Sra. de Rênal estava grávida dele, e que ela havia mandado uma carta ao pai de Mathilde, alertando-o de que Julien costumava atacar mulheres vulneráveis. Ao ser desmascarado, Julien perde Mathilde, para outro, e tenta matar a primeira amante, com um tiro. A Sra. de Rênal sobrevive, (como Líria também sobreviveu), mas ele foi preso, julgado, condenado e morto, por decapitação. Mas antes de ser decapitado, Julien foi perdoado pela Sra. de Rênal, que inclusive o visitava, na cadeia. O Realismo, como Escola Literária, na França, já existia, mas pela crueldade das descrições da “decapitação de Julien Sorel”, e do modo como a Sra. de Rênal se propôs a demonstrar, publica e detalhadamente, seu sofrimento pela morte do amante, Stendhal fundou o Realismo Naturalista. 
      Em Desenredo, quando o Narrador disse que Jó Joaquim “trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja”, ele também quis se referir às cenas da Sra. de Rênal que, em prantos, transportou a cabeça do amante, em carro aberto, para juntá-la ao corpo. O caso amoroso dos amantes era conhecido por poucos, mas com a morte de Julien, ela armou um verdadeiro circo, para delírio público. 
     Há duas interpretações em torno do Título “O Vermelho e o Negro”: - Uns atribuem o negro à cor da batina de Julien; e o vermelho, ao seu sangue lavado; - Outros acham que “o vermelho” vem da cor da antiga farda dos franceses; e o negro, da batina dos padres. Concordo com os dois, mas vou além. O autor ressaltou que “Julien era extremamente pálido”, ou seja, tinha pouco sangue nas veias e no coração também. Ele usava “o amor” para sua ascensão social, (igualmente a Jó Joaquim, “ele meditava o amor”). Sua vontade era a de ter nascido rico, nobre, ou como se diz: com “sangue azul”. 
       Esse desejo transparecia em sua cultura, em seus delicados modos, e em suas pálidas faces, já que “nobres nunca tomavam sol”. Na verdade, Julien tinha sangue de barata. Mas sejam nobres ou pobres, a cor do sangue é sempre o vermelho. E o negro pode ser o da batina, mas tem variações: a do Bispo é roxa e a do Papa é branca. Mas, sem dúvida, o negro é sempre a cor da morte... 

    Bem, mas antes de retomar o fio dos Silogismos Encadeados, é preciso lhes explicar que Guimarães Rosa trata de forma inusitada “os provérbios e ditos populares”, com a intenção de revitalizá-los, pois se tornam clichês desgastados pelo tempo. Notem que ele nos faz empregar os ditos, porém, refletindo contrariamente às ideias expressas por eles (por lentes divergentes). 
     O exemplo é sempre melhor que a explicação: “A curiosidade já matou muita gente, inclusive Narciso”; mas por falta dessa, “morreram muitos leitores de Desenredo”, que preferiram abandonar o conto e permanecerem com “a pulga atrás da orelha”. 
      Por outra lente, Guimarães nos leva a pensar as verdades. Notem que se disse pensar as, e não nas, nem sobre as verdades, da mesma forma que ele disse “meditar o amor”; e não sobre o amor. Ele quer dizer que devemos pensar as verdades redondamente (“conforme o mundo é mundo”), pois a verdade completa é composta de meias verdades e meias mentiras.  Em Grande Sertão: Veredas, por exemplo, “a alma é a verdade, imortal e de Deus dada”; e o corpo, a mentira; pois é mortal. 
      Ele estabelece essa comparação, porque já nascemos para morrer, e sofremos o mesmo processo de desrealização de um corpo poético, inclusive o das metamorfoses. Esta é mais uma das razões pelas quais Guimarães Rosa transfunde a vida em arte, e repete o processo da criação, em suas obras. 
      Naquela entrevista dada a Lorenz, ele afirmou que sua linguagem era a do futuro. Hoje, em 2015, constata-se o fato. As Universidades vêm desenvolvendo, junto aos Acadêmicos de todas as áreas, um trabalho “contra a leitura inocente”. O resultado não se vê apenas na esperteza Retórica dos Advogados, mas na linguagem televisiva, como a dos publicitários, a dos grandes gênios e comediantes, como Chico Anísio e Jô Soares, e também, a de alguns jornalistas, como foi o caso de Joelmir Betting, que não se contentava, simplesmente em transmitir a notícia, mas dava-lhe graça e alma poética. 
      Com isso, quero dizer que, da mesma forma “que devemos dar a César o que é de César”; e a América a Colombo, devemos nossa atual linguagem, “no sentido mais complexo de suas espertezas metafísicas”, a esse “inédito poeta e homem”, a João Guimarães Rosa. 
       Bem, falávamos do leitor que preferiu abandonar o conto. Agora, vai-se falar do bom leitor, que não aceita ficar com a pulga atrás da orelha, não aceita meias verdades, e recomeça a ler o conto, com atenção redobrada, para tirar suas dúvidas... “e quanto mais ele reza, mais assombração lhe aparece”(diz o cristão e o popular) ou, quanto mais ele o lê, mais dúvidas lhe surgem, (diz o erudito e o ateu). Através das crescentes dúvidas, Guimarães Rosa atrai os leitores curiosos, mas, principalmente o leitor-ateu para seu universo, por que o desafia na razão inversa de sua lógica, para que esse leitor chegue à razão direta da Narrativa: à sua evidente ilogicidade, e se ponha a rastrear o verdadeiro enredo, ou a verdade completa. 
       Guimarães Rosa é difícil de interpretar, porque aplica, conscientemente, em seus textos, as Leis que regem o Universo real. Essas Leis são forças divergentes ou opostas, mas responsáveis pela ordem e equilíbrio do Universo. 
    Quando, por exemplo, a Lei da Gravitação Universal venceu, caiu uma maçã na cabeça de Newton... E não é de se perguntar por que foi justamente “a queda do fruto” que o levou à descoberta dessa Lei, e não a queda de outro objeto qualquer? — Parece mesmo que “Deus sempre concorre com a graça, alumiando”. Padre Vieira também foi puxado pela força da gravidade, pois ao inverter seu discurso e ficar de cabeça para baixo, sofreu um belo tombo, porém, recomeçou e terminou lindamente o seu Sermão. Outro problema de um Sermão é quando o assunto é a conversão, pois falar para pessoa que já tem Deus no coração, (que O tem como arma e retaguarda), é falar de igual para igual: ou cada um permanece com seu credo; ou um dos dois muda de religião. Mas o pior de todos os riscos é converter ateu convicto: - é como lutar desarmado contra “truz de tigre ou leão”: ou corre em busca da arma, ou morre; porque Ateu tem retaguarda científica e ares de superioridade. 
     Ele apenas levanta uma das mãos à altura do nariz, e com simples tapinha o abate. Ateu “tem ouvidos fechados”, mas vá que “num abrir e não fechar de ouvidos” ele repense em seus conceitos...        Em compensação, tem olhos sempre abertos e voltados para as Leis do Universo: “Com elas, quem pode, porém?” O ponto de interrogação serve para abrir uma questão, e o dessa última expressão, foi empregado por Guimarães Rosa como objeto real, como foice, ou instrumento linguístico para abrir a mente do ateu, pois “fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de três princípios”, e para converter ateu convicto, também há que se partir de três princípios: - Não adianta lhe fazer sermão. Também não basta derrubar o fruto sagrado sobre sua cabeça, nem dar nela com o gato morto. 
      Para abrir a mente de um ateu, só mesmo com um objeto mais eficaz, como a foice, representada pelos seis pontos de interrogação da Narrativa. (podem contá-los).
     Guimarães Rosa é contra a pregação fanática de qualquer tipo de Credo ou Religião, porque palavra atrai palavra; e boca é o tipo do órgão descontrolado: normalmente fala mais rápido que a produção do pensamento. 
      A conversão deve ser como um bate-papo amigável; de igual para igual, como o de fera com fera, ou “de tigre com leão”. A pessoa que deseja converter um ateu, além de ter retaguarda religiosa, também deve ter a científica, como é o caso deste conto. E sendo assim, o conto desperta o interesse do ateu, que até pode repensar sobre a origem da palavra, pois como já lhes foi explicado, boca e cérebro sem Deus, são como computadores sem alma. 
     Atualmente, o homem já está em posição divina, criando cérebros. — Guimarães Rosa também recriou o universo em suas narrativas, mas produzindo conscientemente os fenômenos metafísicos da linguagem para atingir seus objetivos. Com isso, também criou novo estilo, e entre dezenas de outros recursos linguísticos que ele empregou, o mais evidente é que uma só palavra, ou expressão, abre seu significado em três ou mais. 
    A Narrativa, ora nos remete ao autor, ora a Jó Joaquim, e ora aos intérpretes, além de nos fazer desconfiar do que realmente é verdade ou mentira. 
   Mas voltando ao leitor-ateu; se ele reconhecer que a origem da palavra é poética e divina, Guimarães Rosa poderá fechar a Narrativa em círculo, no ponto em que a alma do autor, a do poeta e a do leitor serão “conformadas em triângulo amoroso”. Esse ponto em que a Narrativa será fechada em círculo é o mesmo daquela expressão de Desenredo: “o ponto está em que o soube, de tal arte:”... 
     Porém, se o leitor-ateu ajoelhou, mas não rezou, ainda há mais duas chances de ele “desmanchar o transato”, ou seja, de chegar a recompor um dos enredos, e da melhor forma que ele o entender, o que já faz Guimarães Rosa e o leitor-ateu “Alegres e felizes, sim, ou por que forma for”. 
     Neste outro trecho em que “Jó Joaquim dedicou-se a endireitar-se e entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã”, o autor quis nos dizer que, “dedicou-se a endireitar-se”, pois também tratou de cuidar de seu próprio aparelho fonador, já que escreveu Desenredo “enxugando o discurso”, encolhendo o universo de quatrocentos e tantas páginas, expandido em Grande Sertão Veredas. Desenredo é “o conta-gotas”, ou amostra-grátis da complexa tessitura do discurso de sua grandiosa Obra-síntese. 
     Bem, uma vez que os sinestesiados leitores aprenderam a viver a poesia, com a versão da parte bela de Desenredo, ou seja, da parte histórico-literária e poética, é preciso que acordem, para, também, poderem ver Eva nascer. Embora isso não queira dizer que a primeira parte tenha-se esgotado. Ela “continuará a conviver convolada” com o restante da análise. 
      Como Guimarães Rosa trabalha com as verdades completas, e as que foram vistas são belas, mas não passam “de meias verdades”; daqui em diante é preciso lucidez, pois a análise será feita do ponto de vista ilógico do texto, para que cheguemos ao lógico, e possamos trazer, à luz, a verdade completa  do verdadeiro enredo de Desenredo.

                                      
                                        Segunda Parte

       Comecemos por algumas informações sobre Líria: ... "olhos de viva mosca", ... 
Locução adjetiva e restritiva, porque atribui uma qualidade, um defeito e um estado que, necessariamente, não é peculiar ao ser, mas acidental: Líria possui olhos de inseto. 
      Se o Narrador tivesse dito “olhos de viva cor” ou “de viva flor”, seria aceitável. Mas da forma que a locução foi dita, apresenta uma inversão de funções, porque o “substantivo mosca” é que desqualifica o “adjetivo viva”, já que nenhuma mulher que tenha “olhos vivos”, gostaria de, em seguida, tê-los comparados aos de uma mosca. E por que o foram? Porque os insetos são dotados de olhos multifacetados, que enxergam para todos os lados, motivo pelo qual é tão difícil de apanhá-los. 
     Só mesmo os intérpretes tendo “olhos de viva mosca” para poderem seguir outra. Existe, inclusive, o verbo “moscar”, cuja acepção é sumir-se, na maior rapidez. Líria, além de ter olhos de inseto, devia ser tão rápida quanto a acepção do verbo: - dedicava-se aos seus três doces amores, sem lhes dar tempo para que notassem o fato. A essas informações, soma-se a hipótese de o leitor já ter ouvido alguém dizer: - “gostaria de ser uma mosca” para ouvir certas “conversinhas escudadas”. 

                                                        
                                                              “morena mel e pão”. 

      Palavras que, a princípio, lembram as qualidades de “Iracema: índia, de pele macia e morena e lábios com sabor de mel” (do romance de José de Alencar). Mas segundo a tradição portuguesa, “morena” é um pão-doce, especificamente, uma rosca trançada, em forma de cobra, regada com calda feita de mel. As informações sobre Líria são poucas, e produzem uma rápida sucessão de imagens, próprias da cinematografia. 
     Uma vez esclarecido o roteiro cinematográfico, e o leitor já tendo sido despertado, pode visualizar o Narrador e chegar correndo ao ponto de encontro dos “beberrões”: nos bastidores da estória de Jó Joaquim; em uma padaria, local de “conversinhas escudadas”, regadas a cerveja, pão, rosca e muita mosca... ...

                                               Aliás casada. Sorriram-se, viram-se”. 

      Além da pouca importância que ele dá ao fato de Líria ser casada, pelo emprego do “Aliás”, a inversão do tempo com o espaço das expressões acima é “tão clara como água suja”, já que é impossível “primeiro sorrir a uma pessoa”, para, só depois, “vê-la”. A ordem correta seria: “Viram-se, Sorriram-se”. De tanta evidência, essa inversão frasal pode ser considerada ideal para que o leitor “desmanche o transato”; desconfie de que “tudo está sendo narrado ao contrário”.

                                    “Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor”.
 
     “Infinitamente” refere-se a algo que não tem princípio nem fim, razão pela qual é considerado advérbio de tempo indefinido, e significa que ele a conhecia de longa data, que sempre a assediou — “até que — em maio, pegou o amor”. 
      Sem dúvida, o sentido desse verbo é pejorativo. Parece que Jó Joaquim foi contaminado por amor doentio, já que “amor não se pega”.  Mais à frente, veremos de que forma Jó Joaquim pegou o amor.

                               “Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento”. 

     Se esse amor era tão “impetuoso quanto uma nau desgovernada”; não poderia ser “tudo tão secreto” quanto afirmou Jó Joaquim: “Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas”. 
        Se o leitor reler essa última expressão, e pronunciar a palavra “claro”, ironicamente, verá que ela pertence à voz do Narrador, que achava “tudo muito claro”. 
      Plasticamente, esse vocábulo representa “o buraco linguístico”, passagem através da qual, separa-se a opinião do Narrador das certezas de clandestinidade de Jó Joaquim. 
     O excesso de palavras ditas por Jó Joaquim, antes da primeira vírgula, e misturadas à opinião do Narrador, terminaram por “Criar nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?” 
      Sabe-se que “Criar” já encerra a ideia do novo, portanto é redundância dizer “criar nova”. Mas foi dito dessa forma, porque Jó Joaquim “dizia-se inédito poeta e homem”, e segredou “seus remendados testemunhos” ao Narrador, em linguagem poética. Na verdade, ele estava criando um paronomásia, que é a semelhança sonora entre palavras, chamada de rima em eco, na prosa. 
Ex.: “Mas muito” = (m,m), “tendo tudo” = (t,t), “de ser secreto” = (s.s). 
    A Paronomásia bem feita embeleza o texto, mas essa de Jó Joaquim ofende nossos ouvidos.  Bastava que ele dissesse: “Mas tudo muito secreto, coberto de sete capas”. 
   Outro motivo para que ele tenha criado a redundância (a paronomásia) é porque “a nova realidade” apresenta dois modos de ser analisada: — Foneticamente, como se fez, e ludicamente, através desta adivinha: —“O que é o que é, que, quanto mais se tira, mais aumenta? 
Resposta: quanto mais se tira a verdade de um fato, maior de um lado fica o buraco; e mais alto, do outro, o amontoado de mentiras! “Claro mesmo, é que o caso nada tinha de secreto”. 


      Também há uma segunda leitura a respeito da “Nova, Transformada Realidade”, que aconteceu em 1856, na França, quando Gustave Flaubert publicou “Madame Bovary”, fundando novo estilo literário: — O Novo Realismo chamado de Mágico, por uns, e de Fantástico, por outros, é assim denominado, porque se aprofunda na abordagem da psicologia enferma da personagem principal, Emma Bovary. 


      Emma, moça simples, casa-se com o viúvo e médico Charles Bovary, e vão viver em uma boa casa, no campo. Apesar das festas, com muitos convidados, ela fica entediada e pede ao marido que retornem à cidade, e voltam. Já na cidade, e com a vida social bem mais agitada, o tédio não a deixava, sinal de que sua enfermidade psicológica se agravava... Mas o tédio da moça era causado pela leitura de obras do Estilo Romântico, que a faziam sonhar e idealizar sua própria vida. 
     Emma terminou por romper com o mundo real e passou a viver perigosamente, num mundo paralelo, de amantes e amores clandestinos. Para cada amante, ela usava um determinado par de luvas, que representava o tratamento diferente que dava a cada um. (Líria trocava de nome e Emma  troca da luvas). 
     Também gastou toda a fortuna do marido, comprando tudo o que desejava para si e para os amantes, além de afundá-lo em dívidas. O fim só poderia ser trágico: Emma não consegue enfrentar a nova realidade que ela mesma cavou; “o seu próprio buraco”, então, toma veneno, e morre. 
 *O nome de Emma é meio sugestivo, é o mesmo daquela ave emplumada, parecida com o avestruz que, quando sente medo, tem vontade de correr e sair voando, mas por ser de grande porte, não consegue, então  enfia a cabeça no primeiro buraco que encontra. 
      Charles, seu marido, que muito a amava, foi o último a ficar sabendo de tudo, e se a esposa não tivesse cometido suicídio, provavelmente tê-la-ia perdoado. 
    “Por tudo”, Charles fica doente, e também morre. E desta vez, “para novo e feliz escândalo popular”, Gustave Flaubert, o autor, é quem foi a julgamento, pois seu romance foi considerado ofensivo à família, à moral e aos bons costumes da época. Entretanto, livrou-se da condenação, quando lhe foi perguntado: — “Quem é Emma Bovary?”, e ele respondeu: — “Emma Bovary c’est moi”: Emma Bovary sou eu. 


       “Madame Bovary” e “O Vermelho e o Negro” são obras-primas do Realismo francês que foram intertextualizadas com Desenredo, mas observem a cirurgia que Jó Joaquim fez com o passado dos romances, neste trecho: “Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava Nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?” 
      Ao “dar-se o  Desmastreio”, Jó Joaquim percebeu que estava lidando com Líria, como se ela fosse a vulnerável Sra. de Rênal, que realmente se apaixonou por Julien Sorel. Grande foi o seu engano. Líria tinha a mesma personalidade enferma de Emma Bovary, que demonstrou não amar o marido, pelas sucessivas traições. 
        E, “em lance de tão vermelha e preta amplitude”, ou seja, de Julien ter sido morto, pelo erro de ter atentado contra a vida da amante (e essa era a vontade de Jó Joaquim, a de matar Líria); e de o inocente Charles Bovary também ter morrido, mas de desgosto, Jó Joaquim pensou que não “desejava esse fim para si, mas a felicidade”, e perguntou-se : “Todo fim é impossível?”. Claro que não, e resolveu “operar o passado”: extraiu Emma do Realismo Mágico e a transplantou para o Realismo Naturalista. Assim, a inocência da Sra. de Rênal casaria muito melhor com a de Charles Bovary, e a esperteza de Emma Bovary seria mais justa, se fosse usada contra a de Julien Sorel. 
Enfim, o tratamento seria de “igual para igual”, como “a de tigre com leão”. 

      Guimarães Rosa disse em um de seus contos: “Quem quer viver faz mágica”. Além das dificuldades que se tem de enfrentar na vida, ele está se referindo “ao exercício mágico” das palavras que vivem o pensamento de um poeta ou escritor. 
    Resumidamente, um mágico profissional costuma transformar mulheres em tigres, e sumir ou aparecer com os mais variados objetos; e o exemplo a seguir é de particular interesse: Ele dobra uma folha de jornal em várias partes, corta-a em pedacinhos, e os joga dentro de um recipiente que contém água. 
      Em seguida, transfere a água para outro recipiente e mostra ao público que a folha sumiu! Depois disso, faz um gesto de “abracadabra”, reaparece com a mesma folha, desdobra-a e mostra-a seca e inteira ao público. 
     A ilusão provocada está na mudança de estado físico: a folha sumiu, porque se liquefez; depois reapareceu em estado normal (sólido). 
      Agora, considerem as mágicas feitas por Guimarães Rosa até o momento: Seu primeiro passe está no “hipnotismo”: sinestesiou o leitor e convenceu-o a ouvir o conto; No segundo passe, além de hipnotizado, deixou-nos ébrios; Seu terceiro passe foi o da transposição, quando ele cavou o buraco (sumiu com as palavras, de um lado, e reapareceu com o amontoado de mentiras do outro). Seu quarto passe foi quando ele disse: “Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas”. 
    Essa mágica é feita através de três processos: redução, liquefação e solidificação: Primeiro, recortou o texto, minuciosamente, até que ficasse do tamanho de “formiguinhas brancas”, isto é, minúsculos, e quase imperceptíveis. E reduzido, liquefez o texto, “com lágrimas”, porque “se sentiu quase criminoso” “ao operar o passado do Realismo e transplantá-los entre si”. Depois disso, surgiu com o mesmo texto, em estado sólido, com Desenredo. 
       Lembrem-se de que Guimarães Rosa também era médico; sabia como operar. 
      Outro aspecto relevante, é que o mágico comum trabalha com “a visível materialidade física dos objetos”, e Guimarães Rosa, “com a invisível” (=palavras). 
     Embora óbvio para uns, é bom esclarecer que um texto escrito é apenas “a imagem da palavra oral”; da mesma forma que a pintura de uma andorinha não é a ave em si. Por essas razões, disse o Narrador “que não seria tão fácil como refritar almôndegas”, ou seja, nosso trabalho não é o de refritá-las, mas o de desfazer e refazer as almôndegas. — Se o próprio autor “foi às lagrimas” “por sentir-se quase criminoso” ao operar a “Realidade”, e escrever o conto em forma “retalhos-linguísticos”, montando, com eles, um enorme quebra-cabeças de Silogismos Encadeados; muito mais difícil, para nós, leitores, seria reorganizá-los e entendê-lo. 
       Mas a grande apresentação de Guimarães Rosa estará na “sublimação”, que é a passagem da água em estado sólido, diretamente para o “gasoso”. Será o momento mágico da transcendência, denominado epifania, no qual o leitor entrará novamente em comunhão com a alma do conto, porque, por nós, também “passa três vezes a felicidade”. 
         Bem, vamos dar sequência à análise dos retalhos linguísticos.

 “Porque o marido se fazia notório na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância”. 

       Primeiramente, vejam o que diz o Professor Luiz Antônio Sacconi, em seu livro intitulado “Não Confunda”, sobre a diferença entre “público e notório”: — “Público é o que corre na voz de todos, o que todos dizem, o que de todos é sabido, mas pode ser falso”; — “Notório é aquilo geralmente sabido, ou conhecido como certo e indubitável. E é sempre certo, porque só chega a sê-lo pelas provas que se adquirem com este fim”. 
     “As aldeias da vigilância e do ciúme do marido de Líria eram notórias”, porque ele deixava marcas visíveis de espancamento, no corpo da esposa. 
      Também era do conhecimento de todos, era público, que o marido portava arma de fogo, já que “ela foi ferida, mediante revólver”. 

“Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo”.

     Em primeiro lugar, é bom saber por que o Narrador denominou o caso de “clandestino”, e Jó Joaquim “de secreto”, com nova consulta ao livro do Professor Luiz Antônio Sacconi: — “Secreto é tudo aquilo que ninguém conhece, ou sobre o qual poucos sabem”; — “Clandestino é tudo o que se faz às escondidas, fora da lei, sem que ninguém o conheça. Assim, nem tudo o que é secreto é clandestino, mas tudo o que é clandestino é secreto”. “O clandestino sempre é ilegal. As sociedades ditas secretas nada mais são do que clandestinas, porque não têm amparo legal.” “Uma emissora de rádio pode ser secreta e legal; a clandestina será sempre ilegal, funcionando em lugar ermo”. 
      O primeiro caso de “amor clandestino”, “conforme o mundo é mundo”, ou seja, desde que Deus criou o mundo, foi o de Adão e Eva. 
     Esse tipo de amor pode não ser visível aos olhos dos homens, mas jamais será invisível aos do Criador, e significa que o caso de “amor secreto e clandestino” de Jó Joaquim com Líria deverá ser descoberto. 
      Essa foi a terceira razão de o Narrador ter dito: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”. Adão e Eva foram descobertos; o Enigma da Esfinge também. Resta apenas, descobrirmos o caso de Jó Joaquim com Líria. 
     Bem, mas analisando a expressão em si, existe uma sugestão de que os amantes não pisavam terra-firme, tampouco flutuavam em calmas águas, mas navegavam aérea e perigosamente. 
Guimarães Rosa, através da expressão acima analisada, e desta outra que a completa: “O mais voando em ímpeto de nau tangida a vela e vento”, está nos induzindo a lembrar de uma conhecida mensagem: — “Nem tanto ao céu, nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Para viver a literatura amorosa, basta navegar sobre o leito de um rio, em calmas águas... E é sempre nas águas de um rio, ou perto dele, que Guimarães Rosa reinventa suas histórias de amor. 


      Em um de seus contos intitulado “A Terceira Margem do Rio”, no qual um barqueiro de profissão resolve não mais aportar e voltar para casa; mas passar o resto de sua vida dentro daquele barquinho, apenas tocando as margens, de leve, Guimarães Rosa está criando, metaforicamente, “A Terceira Margem da Vida”, porque ele sempre compara a vida a um rio, que depois de nascer, não para. Na nascente, o rio é pequeno e calmo, mas vai se avolumando, criando e ganhando vertentes, e põe-se a correr, até que chegue à foz, à sua morte, quando deságua no mar. Porém, a nascente continua a produzir o rio; e o mar a recebê-lo. 
     Em Grande Sertão: Veredas, repito, ele diz que “a alma é imortal e de Deus dada”, por isso, quando morremos fisicamente, “a Deus é devolvida”. Guimarães Rosa acreditava na eternidade e na reencarnação. 
      Mas, retomando-se a navegação amorosa, Ovídeo (nascido um ano após a morte do imperador César, em 43 A.C., ao ter três casamentos desfeitos, considerou-os iguais à dor da traição e das três facadas que César recebera no coração)
       Após os desenlaces matrimoniais, Ovídeo escreveu o livro intitulado "A Arte de Amar", no qual afirmou "que o amor era igual ao jugo da guerra": "Assim como César fora subjugado e morto para a guerra; morta também estava, para ele, a possibilidade de se apaixonar novamente".  Também comparou "o amor a um barco, que navegava em águas velozes e perigosas", assim como navegava o de Líria e Jó Joaquim.
       Neste livro, Ovídeo ensina todos os artifícios da sedução, que podem e devem ser empregados na "Arte de Amar", e aconselha seus leitores a visitarem locais específicos, como Museus, Teatros, Monumentos Históricos e Mitológicos, e conhecerem Filósofos e Escritores da época.  Frequentando esses locais, poderiam conhecer pessoas interessantes, seduzi-las, amá-las, e até virem a ser correspondidas.
       Ora, se a possibilidade de se apaixonar novamente estava morta para Ovídeo; a leitura da obra deve ser entendida como uma lição de ambiguidade e de Retórica, pois "a verdadeira arte de amar", ou que deve ser amada, é exatamente a cultura adquirida pela pessoa que frequenta tais lugares.  Portanto, a intenção de Ovídeo era bem outra, isto é, a pessoa  que frequentasse esses lugares é que seria seduzida pelo amor às artes.
       A análise de Desenredo também nos leva a passear pelos Enredos de Amar, através das veredas da Intertextualidade.  Guimarães Rosa, através de Jó Joaquim, demonstra que também "pegou o amor"; foi contaminado pelo amor às Letras e Artes, em geral.
       Não obstante, ele demonstra esse amor, indo "contra a história, por acronologia miúda" , isto é, em tempos distintos, e comungou com vários autores, que as águas são o berço ideal para o desenvolvimento da Literatura Amorosa.
       Nas águas, nadamos a favor, ou erradamente, contra a corrente, e mergulhamos a fim  de lhe explorar o fundo e encontrar um novo mundo: Mitos, Lendas, Sereias (que podem se transformar em cobras venenosas), e os grandes poetas mortos:  No espelho d'água, captam-se transcendentes e Novas Realidades...
       A propósito, o leitor-ouvinte transcendeu?  deparou-se com Guimarães Rosa? - "sorriram-se, viram-se?"
      A outra razão dessa expressão ter sido invertida é por que a imagem de Rosa é virtual: só conseguimos vê-lo no espelho das águas de Desenredo, se mergulharmos na abstração dos textos de outros autores, porque ele é quem escreve através da Intertextualidade, e faz mágicas em grande estilo, neste espelho.
        Naquela expressão em que diz o Narrador, "Não se via como e quando se viam", acabou-se de descobrir "quando e como", em relação ao autor.

         "Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente".

         A expressão "além disso" significa que:
         - Apesar de saberem do ciúme do marido dela;
     - De tentarem contrariar as Leis Universais e de imaginarem que ninguém os via, continuavam a se encontrar "em ímpeto de nau tangida e vela e vento".
        Pois então, Jó Joaquim não "existia só retraído" por se privar da presença de Líria, mas pelos significados abaixo:
       O prefixo "re" de "retraído" indica repetição, e Jó Joaquim estava sendo traído pelas próprias palavras, pela ironia do Narrador, ao retransmiti-las, e por Líria: "com outro", antes do primeiro Desmastreio.

       

                                                "Esperar era reconhecer-se incompleto".

        Essa expressão é muito importante, pois traz preciosas informações sobre o autor:  Guimarães Rosa lançou "Grande Sertão:Veredas" em 1956, e apesar de a estória se belíssima, de nos trazer profundas reflexões, e de nos fazer rir e chorar, também era "inédita": diferente de tudo o que havia em relação a outros romances.  Além disso, seu estilo de linguagem impunha enorme dificuldade para entendê-lo.

       Em 1963, Guimarães Rosa foi eleito, com merecidas honras, como Integrante da Academia Brasileira de Letras, mas como apresentava uma cardiopatia em estágio avançado, sabia que seu coração não aguentaria tamanha emoção e adiou-a. 
E “esperar por isso”, sem tomar nenhum tipo de providência para que seus leitores o compreendessem, “seria reconhecer-se incompleto”. Tratou de reunir seus contos já escritos, e de acrescentar outros, em um livro intitulado “Tutaméia”, que agiria como livro-chave para abrir as portas da compreensão de “Grande Sertão: Veredas”, composto por quarenta contos, “minuciosamente tecidos”, e do qual  Desenredo faz parte. Lançou-o em julho de 1967. 
Guimarães Rosa tinha toda razão em ter adiado sua posse, pois em novembro deste mesmo ano (1967), tomou posse de sua cadeira, e dias depois, faleceu “de tanta emoção”. 
Como disse minha mestra da Universidade Católica de Santos, Mariângela Duarte, a morte precoce de Guimarães Rosa, aos 59 anos, foi um crime de “Lesa-Pátria”. Imaginem o que ele teria escrito se tivesse vivido mais trinta. 

                                        Terceira Parte 

       Até o momento, espero ter demonstrado quais são as três versões de Desenredo: - A primeira e a mais importante é a “forma”; porque a análise de Desenredo explica como, e por quais caminhos Guimarães Rosa escreveu Grande Sertão: Veredas; - A segunda, “uma vereda da primeira”, é a “fórmula”, que o autor demonstra, dando falsas informações sobre Jó Joaquim, e os leitores desatentos “nele acreditam”. 
      Porém, como Guimarães Rosa “sempre nos dá uma colher de chá”, ou melhor, sempre nos cutuca, com vara curta, pois exagera nas mentiras, acabamos por desconfiar delas. 
      E a terceira versão, a que os leitores aguardam, é a verdade sobre o caso de Jó Joaquim, pois ele existe, e até o momento, apenas lhes disse  que tudo é mentira; mas a verdade completa, vocês já sabem, é composta de meias verdades e meias mentiras... 

     Comecemos a remontar a verdade do Enredo oculto pelas mentiras. Jó Joaquim estava reunido com os amigos, numa padaria, da qual eram “fregueses”, pois “cliente ele o era de seu amigo e advogado, o Narrador”. E lá estavam, porque partilhavam do mesmo gosto: de beber cerveja, conversar sobre Literatura, em geral, quando “apareceu Líria”. 
     Diante de tão bela aparição e da troca de “olhares e sorrisos” entre os dois, ele perguntou aos amigos se conheciam a moça; e foi informado de que ela era pessoa de grandes posses, tinha até barco, ...“Aliás, casada”. 
     Mas Jó Joaquim deveria evitá-la, porque corria à boca pequena, que Líria vivia casinhos de amores secretos com os próprios amigos do marido, igual a “Emma Bovary”, e esse de nada sabia. 
       Neste instante, o Narrador apontou para a “morena”, (para a rosca em forma de cobra, regada com calda feita de mel, comparando Líria a uma cobra venenosa). E continuou: Se o marido dela os descobrisse, certamente os mataria, “porque ele se fazia notório, na valentia com ciúme”. 
       E Jó Joaquim lhes perguntou: - Mas se o marido não sabia, por que ele era notório? - Porque "as aldeias da notoriedade do marido apareciam nas marcas de espancamento que ele deixava no corpo da esposa.
        Da segunda vez em que Jó Joaquim a viu, distante da padaria, aproveitou-se para abordá-la, mas Líria, para se fazer de difícil, pois também o desejava, recusou-o sob a alegação de que era casada. Jó Joaquim fez ares de surpresa, como se já não soubesse disso. E contrariando os conselhos do Narrador, Jó Joaquim “sem paciência”, e “com insistência, principalmente”, passou a segui-la, “até que, em maio, pegou o amor literalmente",  flagrou-a com o primeiro amante! “Com malícia”, propôs-lhe a troca: — “deixe-o por mim, e não a denunciarei ao seu marido”. 
    Sem saída, Líria concordou com a troca, razão pela qual disse o Narrador: — “Enfim, entenderam-se”. “E o mais voando em ímpeto de nau tangida a vela e vento”, ou seja, já passado certo tempo, os dois continuavam a viver o amor, perigosamente. E demonstrando-se apaixonada, Líria achou que já tinha conquistado a confiança de Jó Joaquim e disse o que dele desejava: 
— Que realmente procurava alguém, como Jó Joaquim, que a amasse verdadeiramente, e que a ajudasse a se livrar do marido, pois não mais suportava “seus infundados ciúmes com valentia”. 
    Mais, que o marido jurara jamais lhe dar a liberdade. E se Jó Joaquim “nela não acreditasse?” ali estavam, “em sua pele morena, antes bonita”, as marcas da brutalidade do marido: provas vivas e incontestáveis. (de viva mosca, isto sim!). E vendo “as marcas à luz do dia”, e “como o tempo é engenhoso”, Jó Joaquim até se esqueceu de que só a tinha, porque já a havia flagrado com outro, e impusera-lhe a troca. 
     E Jó Joaquim “tendo a causa por justa e averiguada”, (termos jurídicos) ao constatar que realmente as marcas estavam piorando, desde que a conhecera, aceitou a proposta. 
     Sem dúvida, “grude de engodos”: ela, porque acabava de encontrar “o infeliz” que a ajudaria a dar cabo do marido; ele, porque pensava estar aplicando “o velho golpe do baú”. 
    Não obstante, Jó Joaquim percebeu que estava usando Líria, “como Julien Sorel”, para sua tão desejada felicidade: a de ser um célebre poeta. Por isso, “era o seu um amor meditado, a prova de remorsos”, e Jó Joaquim “entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã” e concluiu: “Amor tinha que ser por tudo”: por poesia, celebridade e por Líria também, pois ela era formosa, atraía-o fisicamente (era rainha na arte de amar), além de possuir o dinheiro para uma vida abastada e para suas publicações. 
      A Lírica do Romântico português Almeida Garret, mas já em fase de transição para o Realismo, é composta por três obras-primas intituladas “Barca Bela”, “Este Inferno de Amar” e “Não Te Amo”. Primeiramente, será dado enfoque a “Barca Bela”, que ilustra, perfeitamente, o primeiro momento poético da vida de Jó Joaquim, quando conheceu Líria. 
     Pede-se, gentilmente, aos leitores, que o leiam calmamente, e em voz alta, para que possam sentir sua musicalidade, que corresponde ao compasso dos remos; e sentir, também, sua ambiguidade temática, que não só enreda o pescador, mas “a língua do leitor”, ao emendar sons abertos e fechados. 
                                           
                                                                Barca Bela 
                                
                                                         Pescador da barca bela, 
                                                        Onde vás pescar com ela, 
                                                               Que é tão bela, 
                                                                 Ó pescador 

                                                     Não vês que a última estrela 
                                                        No céu nublado se vela? 
                                                                Colhe a vela 
                                                                Ó pescador! 

                                                        Pescador da barca bela, 
                                                      Deita o lanço com cautela, 
                                                       Que a sereia canta bela... 
                                                               Mas cautela, 
                                                               Ó pescador! 
                               
                                                    Não se enrede a rede nela, 
                                                    Que perdido é remo e vela 
                                                             Só de vê-la,  
                                                             Ó pescador 

                                                      Pescador da barca bela, 
                                                      Inda é tempo, foge dela, 
                                                               Foge dela, 
                                                              Ó pescador

      Essa linda poesia é a metáfora do coração de um homem intensamente apaixonado, cujos olhos já estão tão nublados, quanto o céu também está, e ele continua a ver estrelas. Também não percebe que o canto da sereia é um aviso de perigo aos pescadores. A sereia costuma se enredar e puxar os pescadores para o fundo do mar. 
      Em relação às preocupações do Narrador, Jó Joaquim respondeu-lhe que estava sendo cuidadoso, que “não se via quando e como se viam”, “além disso, ele estava existindo só retraído, minuciosamente”. 
      Nas minúcias de Guimarães Rosa há um mar de informações... 
      A pessoa que é “retraída”, ou é tímida, ou tem algo a esconder. 
  Jó Joaquim estava escondendo “algo” do Narrador, que era o plano que vinha sendo “minuciosamente” elaborado pelos pombinhos, para dar cabo do marido de Líria. 
      E o Narrador, vendo que “Jó Joaquim desejava a felicidade”, perguntou-lhe se não deveria esperar uma separação entre marido e mulher, para depois, viverem esse amor? 
A resposta de Jó Joaquim veio em forma de argumento poético: “esperar era reconhecer-se incompleto”, quer dizer, continuaria a encontrá-la. E pensou consigo mesmo: 
    - Esperar uma separação amigável entre Líria e o marido, era impossível; viver sem ela, mais ainda, e continuarem a ser amantes, aumentaria o risco de serem descobertos: e caso o fossem, era o mesmo que “reconhecer-se incompleto”: não só por ter de se afastar de Líria, mas pelo risco de ter sua alma definitivamente separada de seu próprio corpo, já que “o marido”, “além do ciúme com valentia, também portava arma de fogo”. 
    Outra finalidade da resposta dada, em forma de argumento poético, foi a da dissimulação: Jó Joaquim quis dizer que ele e Líria eram duas pessoas distintas, porém completavam-se em um só corpo, uma só alma e um só coração, como o “Soneto da Fidelidade”, de Vinícius de Moraes: 

                                                     Soneto da Fidelidade 

                                           De tudo, ao meu amor serei atento 
                                        Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto 
                                         Que mesmo em face do maior encanto 
                                         Dele se encante mais meu pensamento

                                          Quero vivê-lo em cada vão momento 
                                      E em seu louvor hei de espalhar meu canto 
                                         E rir meu riso e derramar meu pranto 
                                         Ao seu pesar ou seu contentamento:

                                        E assim, quando mais tarde me procure 
                                     Quem sabe a morte, angústia de quem vive 
                                        Quem sabe a solidão, fim de quem ama 
                                         Eu possa me dizer do amor (que tive): 
                                       Que não seja imortal, posto que é chama 
                                          Mas que seja infinito enquanto dure. 

     Para colocar em prática o diabólico plano, “dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano”. 

      Primeiramente, vejamos quais são os significados de: 
1) “Enorme”: caráter do que vai além da norma, do normal ex.: a enormidade do seu erro. / Gravidade: a enormidade de um crime./ Disparate, dito extravagante: proferir enormidades. 
2) “Milagre”: fato cuja causa escapa à razão humana. / Circunstância extraordinária, inexplicável. / Sucesso, que pela raridade, causa admiração. / Esforço fora do comum. 
3) “Inebriado”: estar feliz e embriagado, a um só tempo. 

Das definições acima, deduz-se que “o inebriado, ou feliz engano” de Jó Joaquim seria “a raridade” de ele ter de permanecer sóbrio para cometer “a enormidade de um crime”, e o marido de Líria, “em circunstância extraordinária”, encontrar-se “embriagado”. Para Guimarães Rosa, a felicidade seria maior ainda, se o seu leitor, “num esforço fora do comum”, percebesse o dito extravagante, as enormidades que Jó Joaquim estava proferindo. 

     O segundo poema da lírica de Almeida Garret demonstra que Jó Joaquim imaginava começar a viver o seu sonho, mas começava sim, a viver o seu calvário: 

                                                     Este Inferno de Amar 
        
                                          Este inferno de amar — como eu amo! 
                                          Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi? 
                                             Esta chama que alenta e consome, 
                                           Que é a vida — e que a vida destrói — 
                                                       É que se veio atear, 
                                        Quando — ai quando se há de ela apagar? 

                                           Eu não sei, não me lembra: o passado, 
                                                   A outra vida que dantes vivi 
                                          Era um sonho talvez... —foi um sonho — 
                                               Em que paz tão serena a dormi! 
                                                Ah! Que doce era aquele sonhar... 
                                            Quem me veio, ai de mim! Despertar 
              
                                             Só me lembra que um dia formoso 
                                              Eu passei... dava o Sol tanta luz! 
                                           E os meus olhos, que vagos giravam, 
                                              Em seus olhos ardentes os pus. 
                                          Que fez ela? Eu que fiz? — Não no sei; 
                                              Mas nessa hora a viver comecei...

Jó Joaquim e Líria continuaram irresponsavelmente a viver o amor — até que — “deu-se o desmastreio”. “O trágico não vem a conta-gotas”: “Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro”... 
    “O desmastreio” refere-se ao “Enorme Milagre”, à circunstância extraordinária, inexplicável, já que o vocábulo empregado, pela sua raridade, causa admiração. Em um belíssimo conto, intitulado “O Burrinho Pedrês”, Guimarães Rosa descreve o conjunto de bois de um curral superlotado, e emprega a estranha palavra, pois cria seu próprio dicionário. ex.: “Alta a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres.” (ele estava visualizando a movimentação dos chifres). 
     Por isso disse Jó Joaquim “que o trágico não vem a conta-gotas”, ou seja,  “desgraça pouca é bobagem”, cai como tempestade. Com o flagrante, vira a si mesmo, mastreando os próprios chifres no ar. 
Toda essa dúvida sobre "quem apanhara quem" surge, porque o o sujeito da oração, que é "um terceiro...", simplesmente está posposto ao verbo, e ninguém percebe.
Basta colocá-lo na ordem direta: "um terceiro...apanhara o marido a mulher:com outro"
Fora realmente Jó Joaquim, "o terceiro", a pessoa que apanhara "o marido a mulher : com outro", quer dizer, "apanhara os três juntos".
      Jó Joaquim já a havia apanhado com o primeiro amante, que dela fora afastado. Portanto, “este outro, era o segundo, e ele próprio só poderia ser o terceiro! É matemático. 
      Devido à farta e proposital ambiguidade da expressão, até pode parecer que o marido os apanhara, mas pela simples omissão de uma crase, Guimarães Rosa apanhou a todos, pois tropeçamos na leitura da expressão, e a relemos para tentarmos entender “quem apanhara quem”... 
     Aliás, esse foi o segundo engano de leitura de crase dos leitores. Observem: Se realmente o marido tivesse apanhado a mulher, a expressão original teria de apresentar crase: ex. “apanhara o marido à mulher:com outro”. Há, inclusive, uma “segunda expressão na Narrativa, onde não há crase, e certamente foi lida como se a houvesse: “era o seu um amor meditado, a prova de remorsos”, ou seja, também é um sujeito posposto, e não é para se lido “à prova de remorsos”. 
     Viram como Guimarães Rosa “faz mágicas com as palavras”? Através de acentos invisíveis, ele faz com que a crase apareça na leitura, onde não há; e desapareça com ela, onde deve haver, para causar ambiguidade. 
      Essas são as sutilezas empregadas por Guimarães Rosa, e devem ser cuidadosamente observadas para descobrirmos a verdade. Mas terminando as definições do “desmastreio”, mastrear, em nosso Dicionário, é erguer um conjunto de, no mínimo, três mastros, dentro de uma embarcação. As funções de tão raro vocábulo são as de nos informar sobre a descoberta dos próprios “chifres de Jó Joaquim”, do flagrante de três pessoas em atitudes amorosas, dentro de um barco, e que o tal barco pertencia a Líria e ao marido.       

    Pouco antes do “desmastreio”, Jó Joaquim estava com os amigos, na padaria, e já bastante embriagado, foi informado pelos amigos que Líria fora vista “com outro”. Indignado, “cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo”
— Pelas marcas que vira em sua pele, por tentar amá-la, e pelo crime que estava prestes a cometer, enfim, por todos os motivos que, porventura, o impedissem de se casar com ela, e vir a ser “célebre”, e preparou-se para verificar “a maledicência”. 
     Enluvou-se, armou-se, escondeu-se próximo ao barco do casal e aguardou —“até que”— começou a ouvir os gritos de Líria. 
     Certo de que os amigos estavam errados, e julgando que ela estivesse sendo brutalizada pelo marido, Jó Joaquim voou barco adentro, de revólver em punho, e “o trágico não vem a conta-gotas”: 
- Deparou-se com uma ridícula cena de sadomasoquismo, a três, e num átimo, “tudo se tornou tão claro como água suja”. "crível, incrível", como disse o autor.
    Ele, que se achava “esperto como Julien Sorel”, não passava de um “PALHAÇO! - IDIOTA! - CRETINO!, pior mesmo que “Charles Bovary” o foi.  
     Líria “voltou” à memória de Jó Joaquim, “nua e pura”, com serpenteantes movimentos de “fofos de bandeira ao vento”... 
     Ele superestimou sua esperteza e subestimou a de Líria: não deveria tê-la visto como simples cobrinha-cascavel. 
      Ele foi picado, porque estava enfrentando a maior e mais mortal de todas as serpentes; a que se ergue a quase um metro do chão e o encara: “Emma Bovary”, “a formosa cobra rei”; que era mais esperta que Eva, que Adão, que Jó Joaquim, e que todos nós. 
   Essa foi uma digressão de segundos na mente de Jó Joaquim, que diante da inqualificável imoralidade e da cômica impostura, resolveu brincar de roleta-russa com os três. 
      
       A expressão abaixo permite que se monte a cena do “desmastreio”:  
     “Sem mais cá, nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o . Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo”.

      Jó Joaquim apontou o revólver para o marido, e ordenou a Líria que pegasse a arma de seu esposo que estava por perto, e a entregasse a ele, mas com o devido cuidado, para que nela não deixasse impressões digitais. Aterrorizada, e não somente assustada, obedeceu-o. 
      Jó Joaquim trocou as armas, apontou o revólver do marido para o próprio dono, e disse: “sem mais cá”, mas como estava embriagado, “errou o alvo e matou o outro”. ("o inebriado engano");   Em seguida, virou-se na direção do marido, achando que era o amante, mas esse, porém?  “nem mais lá estava”... Enquanto “o amante” estava sendo morto, o marido saltou do barco e fugiu a nado. 
      Líria conseguiu sair do mutismo que a paralisava, e disse a Jó Joaquim que ele chegou antes do horário combinado para executarem o marido dela.  Mais: - que ele se enganou, e não matou o marido, que fugiu a nado, mas “o outro”. Vejam como “o tempo realmente é engenhoso”. Por ele ter chegado antes da hora combinada, descobriu três amantes em atitudes amorosas, e o pior é que ele próprio viu-se como terceiro amante”. 
     Como diz o provérbio: “um é pouco, dois é bom, três é demais”, por isso, também, a palavra “desmastreio”. 
     Jó Joaquim, que já estava “derrubadamente surpreso”, terminou mortificado pelo seu “enorme engano”, por isso disse “que havia chegado em péssima hora”, pois acabou vendo o que jamais imaginara ver; e cometeu um crime, por engano, que jamais imaginara cometer. 
    Na verdade, todos ficaram “derrubadamente surpresos”: “leitores, traídos e traidores”, “pois a péssima hora” em que Jó Joaquim alega ter chegado, ao dar-se o segundo desmastreio, também se refere ao primeiro.  E como não havia conserto, Jó Joaquim pensou na fuga do marido e o apelidou de “Azarado fugitivo”, pelas péssimas opções que sobraram a ele: morrer a tiros, com sua própria arma, ou fugir a nado, e riu-se, pois caso sobrevivesse à travessia, estaria em trajes cômicos. 
     O marido nadou para bem longe do barco, e ao chegar a terra, percebeu que estava metido em ridículos trajes: pois “vá-se a camisa que não o dela dentro”, e nu ficou. 
     Ele bem que gostaria de poder ir à polícia e denunciar o assassinato, mas fosse nu, ou em trajes cômicos, também seria “dar bandeira ao vento”, ou seja, expor-se ao ridículo, publicamente. 
    Sem saída, o marido escondeu-se, esperou a madrugada, furtou roupas dos varais, buscou um local onde pudesse se esconder e tentar compreender o que havia acontecido. 
     Temia, inclusive, que Líria já estivesse morta, pois não conhecia Jó Joaquim, e o tomou por “ladrão, sequestrador, assassino compulsivo”, ou outra coisa qualquer; menos por amante da esposa. O marido sabia que Líria tinha consciência de que ele a amava “com todos os seus defeitos, e por tudo o que ela desejava” e que ele cumpria: carinho, atenção, dedicação, amor, dinheiro e sexo sadomasoquista, “da forma que ela achasse melhor, ou por que forma fosse”.  
Como se diz, “o marido é sempre o último a ficar sabendo”, e esse só o soube na hora de sua morte... 
    O marido também era “um Charles Bovary”, porém moderno: deixou-se contaminar pelo amor doentio da esposa. Mas retomando-se a cena “do desmastreio”, Líria estava paralisada de terror por pensar que havia chegado a sua hora, e Jó Joaquim, finalmente, “dela desacreditou”. 
     Compreendeu “o porquê das marcas em sua pele morena”: — “Crível ?” A moça tinha prazer em sentir dor!!! 
     Ele refletiu, e optou por “dar a ela uma colher de chá” — “que não era para truz de tigre ou leão”. 

*Truz é um substantivo que significa “golpe”, “pancada”. É, também, uma Onomatopeia, ou seja, “voz imitativa do estrondo causado pela queda de um corpo ou pela detonação de armas de fogo.” 

     Na verdade, Jó Joaquim deu a ela “uma colher de chá, mas do próprio veneno”, e essa quantidade de veneno de Naja, é dose p’ra “cavalo”: “Derruba o pobre animal, mas não o mata”, pois o cavalo é responsável por produzir o soro antiofídico. 
    Então, Jó Joaquim surrou-a sem piedade — quase até a morte, ao mesmo tempo em que exclamava e produzia a segunda Onomatopeia: -“Nunca tivera ela amantes. Não um. Não dois”. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim, enquanto nela batia, e lhe dava coronhadas (=mediante revólver). 
   Também não foi “apenas uma colher de chá de veneno,” mas três: - Uma para Líria, que sobreviveu; outra para si mesmo, pois se a matasse, perderia sua chance de se casar com ela, de ter o que desejasse, e de se tornar célebre. E a última para o marido, que ainda estava vivo, por engano. 
     “Que de leve a ferira” é que foi expressão “leviana”, ou melhor, Eufemismo: Figura de Linguagem que suaviza a gravidade do que se quer informar. 
    Com a surra, “Jó Joaquim, genial, operava o passado, plástico e contraditório rascunho”.     Ele “operava o passado de Líria, fisicamente, para que ela perdesse psicologicamente, o leviano e prazeroso modo de sentir dor”, igualmente a um cirurgião plástico que, ao refazer o rosto de uma paciente, espera melhorar seu aspecto psicológico. “E com convicção manifesta, criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?” 
    Já se discutiu que “criar nova” é redundância, mas Jó Joaquim imaginou que, “criando novo corpo”; “criava nova alma”. E a resposta que se deve dar à pergunta sobre a realidade ter ficado mais alta ou mais certa, sem dúvida é não, para Jó Joaquim: - Pois como disse     Padre Vieira ao concluir seu sermão: “Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar de mais alto”. 
    Por isso, não é mais certa, pois quem cria nova alma e novo corpo é Deus, e Jó Joaquim estava tentando “transformar a realidade”; - 
  Sim, para a dúvida de Guimarães Rosa, porque ele compreende profundamente o Universo Real, e apenas o está recriando, exatamente como é o nosso, “lindo e feio”, “composto de meias verdades e meias mentiras”, porém, tecido com amor à palavra poética e divina. 
    - Mas terminando de responder à pergunta que o autor nos fez: 
   Para Jó Joaquim é não, de novo, pois segundo os Terapeutas Comportamentais, nunca se obtém bons resultados batendo em criancinhas, que dirá surrando Líria, que já era cobra-criada. 
    Líria era quem realmente “estava criando nova, transformada realidade aos olhos de Jó Joaquim”, pela falsa notoriedade das marcas, em sua pele morena, ou seja: - para falsas provas, falsa notoriedade, que é igual à falsa realidade para Jó Joaquim.  Agora o leitor já pode entender “a obrigatoriedade da crase formada pela falsa realidade acima”, e por que Jó Joaquim foi chamado de “amatemático” pelo Narrador: um artigo definido “a”, somado a outro artigo definido “a”, é igual a um terceiro, chamado crase; e Jó Joaquim não fechava a conta.  

     Jó Joaquim “tinha luz” (que era o aviso de perigo dos amigos); “tinha espelho” (pois já a havia flagrado com o primeiro amante), e tinha olhos, mas somente os punha sobre o que desejava ver, “em vez de entrar em si, para ver a si mesmo”. 
     Os leitores percebem como essa Narrativa também é um tipo de Sermão? - Que apenas o modo de narrar é que é diferente?  E que o trabalho de tornar a materializar a linda árvore de Padre Vieira é encargo dos intérpretes de Desenredo? 
    “O fruto é o fim a que se destina um Sermão”, e esses que já estamos degustando, referem-se às nossas reflexões sobre o feixe de varas que o autor abocanhou, e que representa a "repressão dos vícios".
    Guimarães Rosa parte “do erro” para que cheguemos ao acerto, razão pela qual “é contraditório ao de Padre Vieira”. 
     Dando sequência à cena do desmastreio, depois de surrá-la, Jó Joaquim recolheu tudo o que se referia ao sadomasoquismo, deixou a arma do marido no mesmo local de onde havia sido feito o disparo, já que, provavelmente, haveria averiguações da balística, enquanto Líria permanecia desacordada. 
    Com o barco “minuciosamente limpo” e livre de qualquer prova de sua presença, Jó Joaquim tentou reanimar Líria, que não reagia!!! Surpreso, “em lance de tão vermelha e preta amplitude” (por julgá-la morta, achou que havia cometido “o segundo e o mais grave dos enganos, tanto que “chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos”, quer dizer, surrou-a, com prazer, descarregando todo seu ódio. Porém, “Proibia--se de ser pseudopersonagem” (se ela estivesse morta, jamais chegaria “a ser marido” e a e realizar seus sonhos)... quando, finalmente, Líria se reanimou, para “enorme alívio” de Jó Joaquim. 
    Convencida por tudo o que viu e sofreu, Líria fez o que Jó Joaquim lhe ordenou, enquanto ele estivesse ausente. Chamou a polícia, denunciou “o marido pela morte do outro”, com a seguinte explicação: — O morto, que ali estava, era apenas um amigo do casal que, desafortunadamente, foi visitá-los em má hora, e tendo interferido para salvá-la da “pública e notória valentia de seu marido”, terminou perdendo a vida, e, provavelmente, foi hospitalizada. 

     “Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando”. 
“Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos”. 


      As informações desse trecho são várias, importantíssimas, e estão entrecruzadas. Analisemos uma a uma: Ao ser “derrubadamente surpreso”, por ver que Líria “tinha o pé em três estribos” (três amantes), e que a todos enganava, “como asnos”, Jó Joaquim lembrou-se da “Farsa de Inês Pereira”, que é um Auto de Gil Vicente, representado, pela primeira vez, na Corte de D. João III, em 1523, cujo tema “Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube”, foi proposto por certos homens de “bom saber”, que duvidavam se Gil escrevia realmente estas obras, ou se as furtava de outros autores; “Inês Pereira, jovem do povo, desejava casar-se com “homem avisado”, discreto em falar, e que soubesse tanger viola”. Recusou Pêro Marques, filho de rico proprietário rural, para aceitar Brás da Mata, escudeiro e pelintra que a maltratava (=cavalo que me derrube). Por sorte, Brás foi chamado para combater em África, e lá, morre, covardemente. Inês casa-se com Pêro Marques e, ato contínuo, montada às costas do novo marido, (asno que me leve) vai ao encontro de um Ermitão, seu ex-namorado”. 
      Jó Joaquim foi feito de “asno” por Líria, e derrubado por como um cavalo, com a grande dose de veneno, mas a surra que ela levou também foi em dose cavalar. Neste outro trecho da mesma expressão, “quando Jó Joaquim foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro”, Guimarães Rosa cita literalmente, dois vocábulos empregados pelo Modernista Brasileiro, Manuel Bandeira, em seu conto intitulado,  




                                                          “Tragédia Brasileira”. 




     Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade. Conheceu Maria Elvira na Lapa, — prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição-de-miséria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria. 
      Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa. Viveram três anos assim. 
       Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos ... Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. 


     A intertextualidade de “Tragédia Brasileira” com “Desenredo” não se dá apenas pela citação literal de “decúbito dorsal”, mas pela semelhança e dessemelhança dos fatos: - Semelhança dos temas: (tragédia, por repetidas traições, seguidas de morte), e dos nomes das personagens: Maria Elvira com Irlívia. 


    -Dessemelhança: Misael tinha maturidade, experiência, dinheiro e boa posição social, para escolher entre as melhores e mais belas mulheres que desejasse, mas também se apaixonou por uma Naja, que não merecia o seu amor, e que acabou em tragédia. A paciência de Misael com as mudanças, e seu desapego às posses materiais eram fatos totalmente diversos da postura e das intenções de Jó Joaquim. 
Misael amou Maria Elvira “até à morte de seus próprios sentidos”: E quando Jó Joaquim disse: -“haja o absoluto amar, e qualquer causa se irrefuta”, na verdade ele estava se lembrando do amor de Misael, ou seja, nenhum juiz, em sã consciência, daria o veredicto de culpado a Misael; mas de inocente, por privação dos próprios sentidos. 
O caso de Jó Joaquim também terminou em tragédia, (com o marido dela desaparecido e o “outro” morto). Mas como ele Líria sobreviveram, ficaram aquém da tragédia. 
Por outro lado, foram além, pois o Desmastreio foi tragicômico. 


     Trágico, também, foi perdermos um poeta de talento, como o modernista português, Mário de Sá Carneiro, que sucumbiu à depressão, e suicidou-se muito jovem. Observem como o poema de Mário foi escrito com muitos pontos de reticências, inclusive há duas linhas inteiras só deles, antes da última estrofe. Ele também deixava transparecer o vazio e a angústia de sua própria vida, no poema.  




                                              Quase 




                       Um pouco mais de sol — eu era brasa, 
                       Um pouco mais de azul — eu era além. 
                       Para atingir, faltou-me um golpe de asa ... 
                         Se ao menos eu permanecesse aquém


                    Assombro ou paz ? Em vão ... Tudo esvaído 
                       Num baixo mar enganador de espuma; 
                      E o grande sonho despertado em bruma, 
                    O grande sonho — ó dor — quase vivido ... 
                   
              Quase o amor, quase o triunfo e a chama, 
                  Quase o princípio e o fim — quase a expansão 
                       Mas na minh’alma tudo se derrama ... 
                               Entanto nada foi só ilusão! 
       
                     De tudo houve um começo ... e tudo errou ... 
                       — Ai a dor de ser-quase, dor sem fim ... 
                  —Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, 
                          Asa que se elançou mas não voou ... 



                          Momentos de alma que desbaratei ...
                          Templos aonde nunca pus um altar... 
                          Rios que perdi sem os levar ao mar ... 
                          Ânsias que foram mas que não fixei ... 


                         Se me vagueio, encontro só indícios ... 
                        Ogivas para o sol — vejo-as cerradas: 
                        E mãos de herói, sem fé, acobardadas, 
                        Puseram grades sobre os precipícios ... 



                            Num ímpeto difuso de quebranto, 
                             Tudo encetei e nada possuí ... 
                          Hoje, de mim, só resta o desencanto 
                           Das coisas que beijei mas não vivi 

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                                                   ......
........................................................................................................                                                        ..

                       Um pouco mais de sol — e fora brasa, 
                       Um pouco mais de azul — e fora além. 
                     Para atingir, faltou-me um golpe de asa ... 
                       Se ao menos eu permanecesse aquém ...  

      Continuemos com a interpretação daquele mesmo trecho, em que Jó Joaquim “foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando” .
Essa duas palavras se referem ao modo como “Jó Joaquim exercitava-se a aguentar-se nas defeituosas emoções”, por que: 

“Inefável” é delicioso.  Alegria inebriante, que não se pode exprimir por palavras; ou pelos reais e seguintes motivos: por ele, Jó Joaquim, não ter sido o amante descoberto, mas “o outro”; por se livrar da culpa, já que o marido a assumiu, por ter fugido. Além disso, o disparo foi feito com a arma do marido, contendo as digitais dele: prova irrefutável da culpabilidade do “Azarado fugitivo do marido.” 

“Infando” também é indizível, mas por ser abominável, cruel, execrável: que não se deve falar... Jó Joaquim tanto não podia, quanto não devia falar sobre a “abominável descoberta”, o crime que cometeu, por engano, e “a cruel surra que quase matou Líria”, nem deixar transparecer seus atuais sentimentos de ódio por ela. Por isso, disse o Narrador ironicamente: “quiçá lágrimas”. 
      Na verdade, Jó Joaquim ria e chorava (de alegria e de tristeza), e sua morte foi apenas simbólica. “Jó Joaquim reteve-se de vê-la”. Lógico, pois ela estava hospitalizada, e por hora, era ele quem “não poderia dar bandeira ao vento”: aparecer, pois para “Jó Joaquim, claro! ... tudo era muito secreto”. Também “reteve-se de vê-la” da forma como ela realmente era: além de sadomasoquista, ninfomaníaca e insaciável, pela necessidade de ter tantos amantes. 
    Ademais, Jó Joaquim achava que tinha a alma de um poeta, e não conseguia imaginá-la “serpenteando de dor, com prazer,” por suas próprias mãos. Preferiria imaginar Líria “— longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã” (de corpo e alma) Por hora, queria distância dela, mas na verdade “Jó Joaquim pegou o amor, infinitamente”. 
      Nesta estória, até já se sabe como foi seu começo, mas não como será o seu fim. Jó Joaquim “não conformou o amor clandestino conforme o mundo é mundo”, porque não é possível fazer isto. Se a Terra gira em torno de si mesma e ao redor do Sol, sempre cumprindo lentamente a sua órbita, é porque Deus assim nos conformou, com perfeição milimétrica. Já “o amor clandestino, de qualquer forma, ou por que forma for”, terminará em erro:- Erro de hora, de teimosia, de pessoa, de matemática, de crase, de avaliação, de filosofia de vida, de contradição, erro de lógica, e até de um crime. 
    Como se vê, Jó Joaquim estava preso a uma situação inenarrável e indissolúvel, e “continuava a não ter olhos”, pois estava tão ou mais azarado quanto o marido de Líria, num beco sem saída, já que “o ainda sumido e Azarado fugitivo”, poderia reaparecer a qualquer momento, e acusá-lo do crime. 

   “Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo”.

     Providência, por definição, é a Sabedoria Suprema com que Deus rege todas as coisas. É também o nome de um Tratado, elaborado por Sêneca, filósofo romano, mas considerado contraditório, pois, ao mesmo tempo em que afirma sua fé na “Providência Divina”; o autor defende sua fé estoica, cujo significado é: Homem firme e inabalável, que coloca o bem na posse de si mesmo. Sêneca falava que falava na Providência Divina, mas foi considerado contraditório por ter enriquecido por providência própria e ilicitamente. 
    Para Jó Joaquim, a Providência Divina o ajudou, pois trouxe o fugitivo de volta, sem que ninguém, além dele e de Líria o soubesse. Bastava, então, fazer como Sêneca: Tomar das mãos da Providência Divina, que já fez muito a seu favor, e providenciar a morte do marido. 
   É preciso fazer outra pausa, para se observar que ”A felicidade já passou duas vezes, bem debaixo do nariz, dos ouvidos e dos olhos de Jó Joaquim”: ele deixou passar a primeira, quando conheceu Líria, menosprezou o aviso de perigo dos amigos, subestimou a esperteza dela, e acabou vendo o que jamais imaginara ver, além de cometer um crime que jamais imaginara cometer (matar “o outro”, por engano). 
    A segunda, foi não desistir de Líria, por causa de seus intentos, de não se entregar, e de estar prestes a cometer o segundo crime. 

    Como vocês já sabem, a análise de Desenredo segue os caminhos impostos pelo autor, pelas veredas da Intertextualidade. E quem já leu aquele conto “O Burrinho Pedrês”, pode verificar que ele nos deixa claro o seguinte: temos de andar com a análise, como anda aquele Burrinho: “no seu passo curto de introvertido, pondo, com precisão milimétrica, no rasto das patas da frente, as mimosas patas de trás”. Que também, burro que se preza, não corre desembestado, como um qualquer cavalo ”. As expressões empregadas por Guimarães Rosa sempre nos faz a sorrir... 
    A estrada que tomamos é longa, cheia de troncos, galhos e espinhos, mas há lindas veredas, com flores e frutos, onde devemos fazer uma parada, para nos deleitar... 
   Enquanto Líria estava hospitalizada, e antes de o marido dela reaparecer, Jó Joaquim “meditava o amor”. O grande poeta português da Escola Clássica, Luís Vaz de Camões, autor de “Os Lusíadas”, em sua belíssima lírica nos ensinou que o amor não pode nem deve ser meditado, ou melhor, racionalizado. 
    Qualquer tentativa de “meditar o amor” gera, na Linguagem, uma Figura mais forte que a Antítese, denominada Oximoro, em que a segunda afirmação não só é contrária, mas destrói a primeira.

       Amor é fogo que arde sem se ver; 
                          É ferida que dói e não se sente; 
                          É um contentamento descontente; 
       É dor que desatina sem doer; 

                          É um não querer mais que bem querer; 
                          É andar solitário por entre a gente; 
                          É nunca contentar-se de contente; 
                          É cuidar que se ganha em perder; 

       É querer estar preso por vontade; 
                          É servir a quem vence, o vencedor; 
                          É ter com quem nos mata lealdade. 

       Mas como causar pode seu favor 
                          Nos corações humanos amizade, 
                          Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

      E “triste, pois que tão calado”, “era o seu um amor meditado, a prova de remorsos”. 
Jó Joaquim realmente estava meditando sobre o amor, mas não o amor, já que ele não pode ser meditado. A terceira composição da lírica de Almeida Garret mostra a conclusão a que ele chegou, sobre o seu amor por Líria: 

                                                      Não te Amo

                                       Não te amo, quero-te: o amor vem d’alma. 
                                               E eu n’alma — tenho a calma. 
                                                     A calma — do jazigo
                                                     Ai ! não te amo, não
 
                                        Não te amo, quero-te: o amor é vida 
                                               E a vida — nem sentida 
                                                 A trago eu já comigo. 
                                                  Ai, não te amo não! 

                                          Ai não te amo, não; só te quero 
                                              De um querer bruto e fero 
                                              Que o sangue me devora, 
                                                Não Chega ao Coração. 

                               Não te amo. És bela: e eu não te amo, ó bela 
                                            Quem ama a aziaga estrela 
                                              Que lhe luz em má hora 
                                                    Da sua perdição 
       
                                  E quero-te, e não te amo, que é forçado, 
                                             Do mau feitiço azado 
                                               Este indigno furor. 
                                           Mas oh! Não te amo não 

                                   E Infame sou, porque te quero; e tanto 
                                          Que de mim tenho espanto, 
                                               De ti medo e terror... 
                                        Mas amar! ... não te amo, não. 

      Da conclusão a que chegou Jó Joaquim, também chegamos a esta: Ou ama, ou não ama, pois o amor só pode ser meditado quando não mais existe, ou já virou ódio. 

    Bem, mas vejamos como se deu “a morte do marido”: Jó Joaquim disse que a “Providência Divina” estava a seu favor, porque o marido voltou, sem que ninguém o soubesse, a não ser ele e Líria. Disse também, que “O tempo é engenhoso”... Esse tempo, ao qual ele se refere, deve ter sido perfeito para que Líria sarasse, o marido voltasse, e Jó Joaquim o encontrasse e o matasse “engenhosamente”, de forma que parecesse morte natural. 

    “Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato”... (da morte do marido).  Dedução lógica, pois se foi ele o autor da morte; logo, foi o primeiro a sabê-lo. 
    O termo “franciscanato” não se refere ao recolhimento ou à solidão de Jó Joaquim, mas à sua penúria, já que essa Ordem é conhecida pela observância absoluta à pobreza, d’onde vem a expressão popular: “Estar numa pobreza franciscana”. 
   Agora já se sabe por que, no começo desta análise, afirmou-se que Jó Joaquim era pobre. O exercício do “franciscanato” demonstra que Jó Joaquim vinha sendo sustentado por Líria, mas no momento, o dinheiro do ex-marido dela deveria estar sendo retido pelos trâmites legais do post mortem. 
  A pista do sustento é encontrada em duas expressões: ... “morena mel e pão” e “gratos abusufrutos”: 
 - “gratos” tem dois significados: agradecido e gratuito. 
 - “pão”, em sentido figurado, é sustento, meio de vida; - “ab” é prefixo latino que exprime aumento, intensidade; - “abuso” é uso em excesso, e “usufruto” é quando alguém usufrui dos bens materiais de outra pessoa, enquanto essa estiver viva, e só entra na posse legal dos bens, após a morte dessa outra. Guimarães Rosa juntou tudo em uma só palavra, para nos dar o grau em que Jó Joaquim “usou” e “abusou” das delícias do amor de Líria, do dinheiro do marido dela, antes de matá-lo, e depois disso, entrar na posse de tudo. 

    Encontrando-se com Jó Joaquim, o Narrador lhe perguntou se ele ainda se sentia ferido pela traição de Líria, e ele prontamente respondeu: “ dolorido, mas já medicado”. Novo Eufemismo, pois na realidade, Jó Joaquim estava totalmente curado: — afinal, o primeiro amante fora afastado de Líria, “o marido e o segundo amante” foram mortos; e dali em diante, a mulher o amor e o dinheiro seriam todos seus !!! 
    Na verdade, Jó Joaquim estava lhe respondendo meias verdades, pois “dolorido, mas já medicado” era o lado bom, ou “menos pior” de toda a desgraça que ele havia sofrido. 
    Vejam o seguinte: a estória que o Narrador nos conta é a mesma que Jó Joaquim contou a ele; e quando ele a reconta, não nos dá garantia de veracidade, ou seja, o Narrador nos vende pelo preço que a comprou”, porém, é esperto como um feirante com sua balança: - ele tira um pouquinho do preço da batatinha e o acrescenta ao tomate; e se o tomate ficar muito caro e encalhar, ele torna a descer o preço do tomate e o acrescenta à abobrinha. 
    O Narrador finge que não sabe dos crimes de Jó Joaquim. A propósito, toda pessoa que lê Desenredo, pela primeira vez, e não sabe que Guimarães Rosa também era serpente, o mais esperto de todos os escritores, exclama, ao final da leitura - Ah!... coitado do Jó Joaquim, pois acredita em seu amor e em sua bondade.
    Bem, já se sabe que foi Jó Joaquim o autor da morte do marido dela, mas vejamos como ele o matou e por que respondeu ao Narrador que o infeliz morreu “afogado ou de tifo”: O marido sumiu por um bom tempo, mas “num abrir e não fechar de ouvidos” soube que a própria esposa o acusou da morte do “outro”, e que poderia ser preso injustamente. 
    Furtivamente, retornou ao barco, e “coberto de sete capas”, esperou que Líria aparecesse e lhe desse uma boa explicação. Quando “já sarada e sã”, Líria foi ao barco, deparou-se com o marido, que imediatamente a questionou sobre a falsa acusação: 
  “Vai, pois”, disse ela: “desde maio, assim que Jó Joaquim a viu, passou a assediá-la, e infinitamente apaixonado, não aceitava ser recusado. Com a esperança de que Jó Joaquim desistisse de seus intentos, Líria nada havia dito ao marido, para não preocupá-lo.  Mas naquele fatídico dia, ela não percebeu que Jó Joaquim a havia seguido até o barco: e depois de matar “o outro”, como ele mesmo assistiu, surrou-a, sem piedade, quase até a morte. (e mostrou ao marido as horríveis cicatrizes, “antes leves”). E por achar que ele não tivesse sobrevivido ao rio, e sob ameaça de também ser morta por Jó Joaquim, obrigou-se a dar falso depoimento. Mas que o marido não se preocupasse em relação aos “seus segredos sexuais”, que estavam guardados a “sete chaves”. 



     Mais: com ares de pena e de felicidade, Líria disse ao esposo que seu estado era deplorável. Que ele precisava de um bom banho, e de se barbear. Enquanto isso, ela iria comprar mantimentos para lhe preparar a comidinha preferida, que seria regada a bons vinhos, para brindarem a vitória, e se amarem. E, ao amanhecer, com a cabeça fresca, pensariam no que fazer. E o marido nela, também acreditou !
    Rápida, como sempre, Líria telefonou a Jó Joaquim, e o informou de que o marido estava vivo e que havia retornado ao barco. Líria voltou com as provisões e várias garrafas de vinho de alto teor alcoólico. Enquanto preparava o jantar, tratou de seduzir o marido e de embriagá-lo. “O inebriado engano também corresponde ao mortal engano”; dia em que o marido trocou a vida pela morte. 
    Para terminar o que Líria começou, Jó Joaquim entrou em cena, quando o marido, já com mente e corpo anestesiados pela bebida, não mais tinha condições de se defender. Facilmente, Jó Joaquim deitou-lhe mais e mais vinho goela abaixo, até afogá-lo. 
     Há pessoas que realmente não têm sorte na vida. E o marido de Líria era uma dessas. Na verdade, nem nome ele tinha. “Azarado fugitivo” já serve para definir o carácter do ex-marido, sua sorte, sua vida e sua morte. Mas como os leitores deste ensaio não me abandonaram, e até aqui, comigo, chegaram, merecem saber “como e por que o coitado do marido morreu”. 
    Se o marido não se preocupasse com a nudez e fosse à polícia, ou se, ao menos, fosse encontrado por ela, estaria vivo, porém, desonrado. Estivesse ele nu, ou em trajes cômicos, todos iriam ficar sabendo do sadomasoquismo, e isto era exatamente o que ele não desejava.  Ele também não queria ser preso por um crime que não cometeu.  Igualmente a Jó Joaquim, o marido também estava numa sinuca de bico, entre “a prisão, a vida e a honra”. 
    — O apelido dado ao marido de Líria não poderia ter sido mais bem escolhido, pois “Azarado fugitivo” é perfeito para a pessoa que é encontrada pelo próprio inimigo. Dessa forma, ele perdeu a vida, mas morreu imaginando ter preservado sua honra. Ainda em relação ao nome do marido, já se viu que ele pode ser ‘chamado de Charles’, como Charles Bovary, marido de Emma, ou de “Misael” da “Tragédia Brasileira”, já que realmente os três amaram suas esposas, até à morte. O importante é que, através do perfil psicológico dos dois últimos, também ficamos sabendo que o marido de Líria deveria ser um homem bom, que a amava, “notório sim, mas nas marcas de amor”.       Tinha boa posição social, “não desejava escândalos”, e sentia-se “ridículo em praticar sadomasoquismo”. Seu único erro foi o de não levá-la a um psicólogo para tratá-la, mas, por amor, render-se aos seus desejos. 
     Este é um bom momento para refletirmos sobre o que Guimarães Rosa diz, e rediz muitas vezes, em “Grande Sertão: Veredas”: “Viver, nem não é muito perigoso?”... Realmente há boas pessoas que perdem suas vidas injustamente, e muitos assassinos vivos e soltos por aí... 
      Sabemos que Jó Joaquim vai sobreviver a essa escabrosa estória, porém, sua honra, que é uma das poucas felicidades que se pode ter na vida, vai passar muito longe dele. 
     Mas continuando com a história, o marido já morto, foi lançado bem longe de onde seria simulado “o naufrágio”, e como Jó Joaquim e Líria tiveram a sorte de lançá-lo próximo a uma foz de esgoto; em águas sujas e contaminadas por dejetos humanos, contendo “Salmonella typfi”, bacilo do tifo, acelerou a decomposição do corpo, que, como demorou a ser encontrado, não mais ofereceu condições de ser devidamente avaliado, já que o Laudo Técnico sobre a causa-mortis foi duvidoso: - “Afogado ou de tifo". 
    Jó Joaquim e Líria reconduziram o barco para perto de uma grande queda d’água — desceram dele, por meio de bote inflável, esvaziaram-no e sumiram com ele. Depois, deixaram que o barco fosse levado pela correnteza —“até que despencasse, no abismo, como um simples barquinho de papel”. 
     Felizes, voltaram, mas cada um para suas casas, para que não fossem vistos juntos. 
   O fundamento de que havia um barco, e de que ele foi naufragado, encontra-se nesta expressão:    “Mas no frágio da barca, de novo respeitado, quieto”. 
   Em Linguagem popular, diz-se que “a mentira é igual à esmola”: quando é demais, o santo desconfia. (construída por excesso); - ou é “coxa”, porque tem a perna curta (por faltar-lhe um pedaço, causa desequilíbrio visual). 
    Se de um lado, “respeitado e quieto” é o excesso, pois ele não era uma coisa nem outra; algo estava faltando do outro! A falta está em “frágio”, que não é palavra de sentido completo, mas “sufixo latino”: Frago, fragio — do verbo latino frangere, fracturar, quebrar. ex.: ossifrago (que quebra ossos) / saxifrago (que quebra rochas), e “naufrágio”, por navis fragio (navio quebrado). 
    Assim que Jó Joaquim ficou sabendo do Laudo técnico sobre a causa-mortis do ex-marido de Líria, exclamou para si mesmo! – “Até depois de morto, ainda foi contaminado por tifo? - Vá ser Azarado assim, lá, nos quintos dos infernos!!! 
    Guimarães Rosa age de forma subliminar (através da psicolinguística), com palavras similares, que induzam seu leitor à existência do tal barco e do naufrágio. Vejam os exemplos: - 

     “Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento”; 
    - “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; 
    -“No frágio da barca”, além daquele, tem outro sentido (figuradamente, são arranjos ou         negócios da vida) ex.: vou governando a barca, como posso. 


    Também faz o mesmo em relação à água: 
     - “conta-gotas” (água em pequena quantidade); 
     - “água suja” (em quantidade normal, mas suficiente para que turve nossos olhos em            relação à suposta bondade e ao falso amor de Jó Joaquim). 
     - “tempestade” (quantidade suficiente para naufragar); 
     - “afogado ou de tifo”. 

    Páginas atrás, vimos que Guimarães Rosa liquefez o texto, e “gota a gota”, o veio pingando em nosso subconsciente, para que colhêssemos as verdades diluídas, até que formasse quantidade suficiente para transbordar e atingir o nível da consciência, como diz este ditado: “Água mole em pedra dura, tanto bate, até que fura”. A concentração de tudo, em seu nível máximo, está contida nesta expressão: “até que — deu-se o desmastreio”, e como se dá de variadas formas, várias são as nossas surpresas.  
   Inclusive, devo-lhes confessar que a interpretação de Desenredo exige sangue, suor e lágrimas. “Sangue do coração, por amar o autor; suor, pela enorme dificuldade encontrada, e lágrimas, mas de felicidade, a cada espanto, a cada nó desfeito”. 

   Nesta expressão: “Suas lágrimas corriam atrás dela como formiguinhas brancas”, o autor também está explicando aos seus intérpretes, que devemos nos comportar como elas: trabalhar e trabalhar, sem cessar, de pedacinho em pedacinho, para nutrirmos a formiga-rainha (“A VERDADE), que fica lá, bem escondidinha. 

                                  
              E aqui começa a segunda estória do casal:

     Encontrando-se, de novo, com o Narrador, após o primeiro desmastreio, Jó Joaquim, todo feliz, disse-lhe que ele e Líria iriam se casar.  Mas como? — ela traiu o marido, com outro, causou-lhe a morte, e você ainda a quer?! E retransmite a notícia aos seus ouvintes, dessa forma: “Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos.” 
    Os argumentos de Jó Joaquim não convenceram o Narrador sobre “o falso encontro casual, o firme fascínio, e o blá-blá-blá de Líria” na orelha de Jó Joaquim, a lhe pedir perdão e a lhe jurar fidelidade. 
   Ademais, Jó Joaquim não poderia nem deveria “num simples abrir e não fechar de ouvidos, nela acreditar”, já que se julgava tão esperto. 
    O Narrador disse que “tudo não passava de um grude de engodos” entre os dois, e que Líria, “desta vez”, devia ter aparecido a Jó Joaquim “sutil como uma colher de chá”, como se fosse uma cobrinha de tamanho reduzido, porque, diz a lenda, “que o fascínio que as serpentes exercem sobre suas vítimas tem a finalidade de hipnotizá-las, e pacificamente, sujeitá-las ao bote. 

    Para o Narrador, as razões de Jó Joaquim não passavam de inocentes argumentos, para justificar a rapidez do casamento. 
   “Daí, de repente, casaram-se”. A velocidade da expressão é igual à rapidez “do bote” que um pensou ter dado no outro. 
    Igualmente a Jó Joaquim, Líria já não mais o desejava, depois da brutal surra que levou.  Preferiria até, que o marido estivesse vivo.  Ela só queria viver como Emma Bovary ou “Inês Pereira (mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube).” Mas foi convencida a se casar com ele, pelos crimes cometidos e pelo falso depoimento que ela se obrigou a dar à polícia. Portanto, “desta vez”, não foi Jó Joaquim quem “nela acreditou”; mas “Líria quem teve de, nele, acreditar”. 
      "O contraditório rascunho tem vários sentidos”. 

    O Narrador, ainda conversando com Jó Joaquim, perguntou se ele não tinha receio de ser traído novamente. E Jó Joaquim, por achar o mesmo, mas para afastar a abominável ideia, respondeu ao amigo com outra pergunta: “Sempre vem imprevisível o abominoso?” 
    E o Narrador disse a seus ouvintes: - “imprevisível coisa nenhuma, ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se”.
   Nessa afirmação, Guimarães Rosa também estava se referindo à paráfrase do tema recorrente sobre as traições do amor clandestino, em toda a História Literária, desde que o mundo é mundo.

    “Deu-se a entrada dos Demônios”. “Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora”. “ De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão”. “Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem.” “E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino”. “Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido”. “Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente.”

     Comecemos a análise pela fuga de Líria. Ao ser flagrada novamente, Líria tinha consciência de que Jó Joaquim poderia matá-la. Mas “viva e rápida”, como sempre, e enquanto Jó Joaquim dava cabo do “terceiro amante”, Líria moscou-se de suas vistas, “e viajou a mulher a desconhecido destino”. Desconhecido só para Jó Joaquim, pois ela tinha tudo preparado para uma necessária e possível fuga. 
Unindo “a fuga de Líria” ao fato de “Jó Joaquim sentir-se quase criminoso, reincidente”, chega-se ao par perfeito que, em Física, é denominado “chave-fechadura”. 


     Se Jó Joaquim “sentiu-se quase criminoso, reincidente”(=chave), é porque Líria é quem “quase foi morta, por duas vezes (=fechadura)”. 


    “Da vez” (da primeira), que ele não tinha a intenção, mas como exagerou na surra, quase a matou; e “da vez” (da segunda), “que não era para truz de tigre ou leão”, mas para truz de arma de fogo, pois ele perdeu a cabeça, e, sem dúvida, iria matá-la. 
   Observem que a ‘SORTE’, desta segunda vez, foi dela, pois "viajou fugida, a desconhecido destino”, e se assim foi, contradiz a afirmação de que "ele  apenas a expulsou, como inédito poeta e homem". 
     

    Já se sabe que a expressão “De amor não a matou”, em linguagem popular, chama-se “mentira descarada”, e que a verdade completa é composta de meias verdades e meias mentiras. Atrás dessa mentira, esconde-se a verdade completa, que é outra chave-fechadura: 
“Se de amor não a matou" (=chave); e por não amar o novo amante descoberto, com certeza,"de ódio", matou-o (=fechadura). 
   Observem que nada foi falado a respeito do paradeiro deste novo amante, porque, desta vez, o Narrador “roubou demais no preço da abobrinha”: “sumiu com o crime e com o corpo”, e cobriu-os com a falsa declaração de amor: — “expulsou-a apenas, apostrofando-se como inédito poeta e homem”. 
    Existe o “apóstrofo”, sinal gráfico (‘), em forma de vírgula, que indica a elisão de letra ou letras, empregado na linguagem poética. Ex.: copo d’água, mas o que ele realmente elidiu, "apostrofou", foi a morte deste terceiro amante. 
   Jó Joaquim também “apostrofou-se” ao se livrar da culpa pelos dois primeiros crimes cometidos.   Já na Retórica, Apostrofar significa invectivar, insultar, xingar. É de imaginar o número de palavrões, “de lérias escabrosas” que Jó Joaquim empregou para “invectivar” Líria, ao surrá-la, ao dar-se o primeiro desmastreio.

     Há a “Apóstrofe”, Figura de Pensamento, cujos significados são: 

1 – Interrupção que o orador ou o escritor faz para se dirigir a seres reais ou fictícios; “Deu-se a entrada dos demônios” 
2 – Interpelação direta e imprevista; “Sempre vem imprevisível o abominoso?” 
3 - Frase enérgica, incisiva ou pungente, dirigida, inesperadamente a alguém: “Nunca tivera ela amantes!...” 

  “Triste, pois que tão calado”. “Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas”. 

     O segundo momento poético de Vinícius de Moraes, o “Soneto da Separação”, descreve a perda de um grande amor, e causa reflexão a respeito “das lágrimas de Jó Joaquim”, de “seu espanto”, do “drama de sua tristeza e de sua alegria”; enfim, de sua aventura errante... 

                                  Soneto da Separação

                                      De repente do riso fez-se o pranto 
                                                 Silencioso e branco como a bruma 
                                               E das bocas unidas fez-se a espuma 
                                            E das mãos espalmadas fez-se o espanto  

                                                 De repente da calma fez-se o vento 
                                                Que dos olhos desfez a última chama 
                                                 E da paixão fez-se o pressentimento 
                                                 E do momento imóvel fez-se o drama. 
                                                 De repente, não mais que de repente 
                                                Fez-se o triste o que se fez de amante 
                                                  E de sozinho o que se fez contente. 
                     
                                                 Fez-se do amigo próximo o distante 
                                                 Fez-se da vida uma aventura errante 
                                                 De repente, não mais que de repente. 

      Outra verdade escondida “a sete capas” é que, “desta segunda vez”, não mais havia barco para naufragar, não mais havia marido azarado fugitivo a quem culpar, porém? — havia sido cometido “mais um crime”, cujo autor não poderia ser outro, senão Jó Joaquim. 

    Para espanto dos leitores, e de Líria também, “chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância.” Jó Joaquim tanto fez e aconteceu que, finalmente, conseguiu realizar seu grande sonho de ser célebre. 
    Apareceu “primeiro que todos”, como “notícia de primeira-mão, na Manchete de todos os Jornais: — “PRESO POR CRIME PASSIONAL, JÓ JOAQUIM, INÉDITO POETA E HOMEM, SERÁ LEVADO A JULGAMENTO PÚBLICO”. 

      “Desejava ele, Jó Joaquim a felicidade, — idéia inata. (a ideia de estar solto). 
      Entregou-se a remir, redimir a mulher à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.”
     Jó Joaquim queria estar solto, mas preso estava, ou: “metido em camisa de sete varas”, e se corroía de ódio pela víbora. Sem saída, parafraseou o velho ditado: “Antes com ela e solto; que sem ela e preso, pois: “vá-se a camisa, que não o dela dentro”, e “começou a remir, redimir a mulher à conta inteira”. “Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois”... 

   -Remissão (com dois esses) é perdão, ato de dar como pago: 
   -Remição (com cedilha) é remir, sinônimo de redimir, cujo significado é “adquirir de novo”, resgatar do poder alheio. Também é “indenizar”, no sentido de livrar cativos, por dinheiro. Nesta última acepção, Jó Joaquim era duas vezes cativo: da polícia, porque estava preso; e de Líria, porque precisava que ela pagasse sua fiança ao seu amigo e advogado, o Narrador. 
     Jó Joaquim também queria que a esposa voltasse para lhe garantir o perdão público, e se fizesse o mesmo, se a perdoasse publicamente, a faria “imaginar-se sem culpa”, e a ideia funcionou, pois "é de notar que o ar vem do ar", ou seja, eram farinhas do mesmo saco.

    “Líria soube-se nua e pura. Voltou, sem culpa, com fofos de bandeira ao vento”, e assim como fez a Sra. de Rênal, ela foi visitá-lo na cadeia, enquanto ele aguardava o julgamento.  Os dois tiveram várias “conversinhas escudadas”, mas resumindo: se ela não depusesse a favor dele, e o salvasse, Jó Joaquim, além de execrá-la publicamente, também a denunciaria pelos crimes. 
     Esta é a outra razão de ele ter empregado a expressão “Enfim, entenderam-se”. 
    E Jó Joaquim, “como bom cliente”, começou a elaborar sua própria defesa. Como seu caso com Líria causou “enorme escândalo popular”, “Jó Joaquim queria apenas os arquétipos”, que são figuras do inconsciente coletivo, fortes, o bastante, para sustentarem “publicamente o desmentido”. “Mas ela era um aroma” (ele sentia o aroma da ideia dos arquétipos, mas não os estava encontrando). 
    Essa é uma clara expressão sinestésica, empregada por escritores Simbolistas, como Boudelaire, que ajuda o leitor a notar, literariamente falando, o Simbolismo da narrativa. 
    Por outra lente, Jó Joaquim estava sendo reduzido a réptil, pois as cobras procuram suas presas através do olfato. Ele precisava ser esperto como uma serpente para se defender. 

     “No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã”.  (afã é uma forte vontade. Não se pode ter uma "jeitosa e forte vontade, a um só tempo).
     “Comenos” significa “instante”: momento em que Jó Joaquim encontrou “os arquétipos” para sustentar sua defesa. 
      Para Líria, encontrou o “arquétipo da Adúltera” da História Bíblica, que em vias de ser morta, por apedrejamento, foi salva pelas bondosas palavras divinas, obtendo o perdão público e resgatando sua imagem. Para si, Jó Joaquim encontrou “o arquétipo de Jó”, personagem também Bíblico, cuja fé em Deus foi testada pela traição dos amigos e da esposa, pela perda de todos os seus bens materiais, e finalmente, pelo Supremo pedido de sacrifício da vida de seu filho. Não obstante, todos esses infortúnios não conseguiram abalar os nobres e elevados sentimentos de Jó de amor a Deus, que, com paciência e resignação, obteve a Graça Divina de a tudo e a todos reaver. 


     Pois foram duas belíssimas escolhas, mas como disse o Narrador, “A Bonança nada tem a ver com a tempestade”. Raciocínio perfeito, já que os dois fenômenos físicos apresentam características totalmente opostas: uma é seca; outra é molhada. 
    Uma vez percebida a diferença, esse provérbio presta-se a explicar “a incrível ideia” de Jó Joaquim: tentar “descaluniar Líria” era uma coisa; ter aptidão para realizá-la, era outra. 
     Naquele trecho em que “Jó Joaquim desejava a felicidade, idéia inata”, (que nasce com a pessoa) ele estava sugerindo que pensássemos ao contrário: em ideia inapta, ou inepta (a que não nasce com a pessoa, que não é realizável, por meio de sua aptidão, pois ele não a tem.) “Jó Joaquim tinha o para não ser”. Desta vez, refere-se ao talento que “ele não tinha” para ser advogado, e terminou sendo. 
Como poeta, Jó Joaquim já não era muito bom, mas como autor da própria defesa, “foi um defeito perfeito”, como esse tragicômico poema do Simbolista francês, Tristan Corbière, intitulado “Epitáfio”. 

                                              Epitáfio 

                   Matou-se de paixão ou morreu de preguiça 
                   Se vive, é só de vício; e deixa apenas isso: 
              — Não ser a sua amante foi o seu maior suplício.—

                             Não nasceu por nenhum lado 
                                E foi criado como mudo. 

                           Tornou-se um arlequim-guisado, 
                                Mistura adúltera de tudo. 
         
                       Tinha um não-sei-que, sem saber onde: 
                         Ouro, — sem trocado para o bonde: 
                      Nervos, — sem nervo: vigor sem “garra”; 
                            Alma, — faltava uma guitarra; 
                         Amor, — mas sem bastante fome. 

                             Muitos nomes para ter um nome.
                              Idealista, — sem ideia. Rima 
                               Rica, — sem matéria prima; 
                             De volta, — sem nunca ter ido; 
                               Se achando sempre perdido

                                 Poeta, apesar dos versos; 
                            Artista sem arte, — ao inverso; 
                                Filósofo — vide verso. 
                             Um sério cômico, — sem sal, 
                               Ator: não soube seu papel; 
                                Pintor: dó-ré-mi-fá-sol; 
                               E músico; usava o pincel.

                             Uma cabeça! — sim, de vento:
                                Muito louco para ter tento; 
                              Seu mal foi singular de mais.
                         —Seus pés quebrados, pés demais.

                                Avis rara — mas de rapina; 
                             Macho ... com manha feminina; 
                            Capaz de tudo, — bom pra nada; 
                            Com certeza, — por certo errada.

                                Pródigo como filho errante 
                         Do Testamento, — herança vacante. 
                          Rebelde, — e com receio do lugar 
                              Comum não saía do lugar

                                 Colorista sem cavalete;
                          Incompreendido ... — abriu o peito: 
                                Chorou, cantou em falsete
                               — e foi um defeito perfeito. 

                           Não foi alguém, nem foi ninguém. 
                               Seu natural era o ar bem 
                          Posto, em pose para a posteridade; 
                            Clínico, na maior ingenuidade; 
                            Impostor, sem cobrar imposto. 
                         — Seu gosto estava no desgosto. 

                         Ninguém foi mais igual, mais gêmeo 
                               Irmão siamês de si mesmo. 
                         Viu-se a si próprio ao microscópio: 
                             Micróbio de seu próprio ópio, 
                               Viajante de rotas perdidas, 
                                 S.O.S. sem salva vidas ... 

                          Muito cheio de si para aturar-se, 
                           Cabeça “alta”, espírito ativo, 
                           Findou, sem saber findar-se. 
                           Ou vivo-morto ou morto vivo.

                    Aqui jaz, coração sem cor, desacordado, 
                          Um bem logrado, malogrado. 

                       (Tradução de Augusto de Campos). 

       Não se tem a nítida impressão de que Jó Joaquim é o "irmão siamês" desse poema?            Ele também “nasceu mudo” (quieto)..., 
       “Ouro, —sem trocado para o bonde”, (pobre),... 
       “Amor,— mas sem bastante fome” (não amava Líria). 
       Enfim, é bom reler o poema, porque ele retrata Jó Joaquim, do começo ao fim. 
Observem como a composição de Desenredo também “é um Arlequim guisado”, e por parecer, leva a intérprete, muitas vezes, a ser “viajante de rotas perdidas”. 


  E chega-se ao grande dia do julgamento público: Achando-se muito bem instrumentalizado pelos arquétipos, Jó Joaquim fez o seu juramento e tomou o seu lugar. Líria estava ao lado do Advogado de Jó Joaquim, como testemunha a favor. 


     Primeira pergunta: Você o matou? — Não tive essa intenção, mas ao flagrar o malandro tentando dominar Líria, à força, para que ela o amasse, fui obrigado a defender minha própria vida e a honra de minha mulher. 


    O Promotor perguntou a Jó Joaquim, o porquê daquele casamento tão rápido, se mal o defunto (o primeiro marido) havia esfriado. E se ele não sabia que corria, “pelas aldeias”, que Líria costumava ser vista com outros, e que, em decorrência disso, “seu primeiro marido” pôs fim à vida de certo rapaz, e de tanto beber, deu cabo da própria. 


      — Nãaao!... Líria não era uma Emma Bovary, mas inocente como a Sra. de Rênal. (e citou o caso das duas obras) - “Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. “E reportou a Lenda a embustes, falsas lérias escabrosas”, e repetiu o que Líria havia dito à polícia, à época do primeiro desmastreio: Que o rapaz era apenas um amigo do casal, que tinha ido visitá-los em má hora; e ao tentar salvá-la da notória valentia do marido, desafortunadamente, tomou um tiro e perdeu a vida.” 

     Disse, inclusive, que já a conhecia muito antes disso. “Se não lhe falhasse a memória, “era...maio”, “quando sorriram-se, viram-se” e ele pegou infinitamente o amor”. 
      Líria também gostou dele, mas recusou-o, sob a alegação de que era casada, e disse que seu “marido era notório, na valentia com ciúme”; e mostrou as marcas a Jó Joaquim. A recusa de Líria era uma das provas de sua honestidade e da dele também, pois “reteve-se de vê-la: proibia-se de ser pseudopersonagem” (de ser amante).  
      Em seu franciscanato, ou seja, tendo que viver um amor pobre, incompleto, platonizado, só lhe restava esperar e confiar na Providência Divina, com a mesma resignação e paciência de “Jó”. “Pois, produziu efeito. Surtiu bem”, e como à Providência praz, logo ficou sabendo que o marido de Líria havia morrido, afogado ou de tifo.”
      “Ela — longe, sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã”. 
     “Vai, pois, com a amada se encontrou. Enfim, entenderam-se”. Como agora, os dois eram livres, apaixonados, e nada deviam, também não havia o que esperar. “Casaram-se sim, para feliz escândalo popular, ou porque forma fosse.”
     “Se Jó Joaquim achasse que Líria não fosse confiável, jamais teria se casado com ela, (“jamais a imaginara a ter o pé em três estribos”) e se os jurados, nela, não acreditassem, “que atirassem a primeira pedra.” 
      O Promotor percebeu que a estória contada estava toda remendada, e muito mal costurada. 


     “Mas.” 
     A razão da conjunção adversativa acima ser seguida de ponto final, na narrativa, indica o seguinte: mal o parágrafo começou, ali mesmo terminou. Esse ponto final depois do “mas” representa as desconfianças geradas pelo depoimento de Jó Joaquim no espírito da Promotoria e dos Jurados que, de surpresa, agitaram-se, “mas” calaram-se pela força dos arquétipos, ou seja, tiveram suas dúvidas mortas na garganta e o silêncio feito, no Tribunal. 
    “O tempo realmente é engenhoso”, e seja ele longo (para que Jó Joaquim elaborasse sua defesa); ou curto demais, ou seja, através de uma torrente de palavras decoradas, Jó Joaquim “secou o assunto”: “sem mais cá nem mais lá”. Isto é, nem deu muito tempo aos Jurados para pensarem, e ponto. 

    Quanto “ao terceiro crime”, mas conhecido de todos “como primeiro e único cometido por Jó Joaquim”, e pelo qual ele estava sendo julgado, Jó Joaquim respirou fundo, e continuou,
“Sempre vem imprevisível o abominoso?” “Da vez, foi ele quem a deparou, em péssima hora: Traído e Traidora”. “De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão”.
    “Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem”. Depois de tanto negar, Jó Joaquim terminou por contradizer-se, chamando-se de traído, e a ela, de “traidora”. Contudo não era culpado, pois além de ele não ter fugido, como “o primeiro marido”, foi espontaneamente à Delegacia esclarecer o ocorrido e continuou: “Creio que, pelo fato de eu tê-lo flagrado batendo em Líria, forçando-a a amá-lo, Deu-se a entrada dos Demônios”: - “O Traidor enlouqueceu, tentou matar-me e não levou a melhor”.  Desta vez, Jó Joaquim fechou a conta, sem querer, pois “um Traído mais uma Traidora exige a presença de um terceiro: “a do Traidor”, que finalmente apareceu. 
      Na verdade, Jó Joaquim deve ter travado um luta feroz com o rapaz, “igual à de tigre com leão” e o matou a unha.
     A notoriedade de sua valentia, adquirida pela prova, era pelo fato de o “Traidor-morto estar todo estropiado”. 
     E como “morto” só serve de prova; jamais de testemunha, não poderia desmentir Jó Joaquim. Só mesmo o maior representante do Realismo, no Brasil, o “incrível” Machado de Assis, foi capaz de escrever um romance intitulado “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, cuja personagem masculina narrou toda a estória de sua vida, em espírito (depois de morto). 
     Em razão da luta, Jó Joaquim também apresentava cicatrizes por todo o corpo, e aproveitando-se disso, agiu exatamente como Líria ao depor contra o “primeiro marido”, (para confirmá-la com o exemplo), e “expôs as marcas aos olhos do Tribunal“, e o povo, repartido, reprovou a atitude do morto”. 


   “Aproveitando-se do momento, finalmente o Advogado de Jó Joaquim pediu a palavra e a absolvição do réu, que agiu em legítima defesa da própria vida, e da honra da esposa, que ali estava, à inteira disposição da promotoria, para confirmar “o testemunho de Jó Joaquim”. 


     O Promotor perguntou a Jó Joaquim se ele perdoaria a esposa, pela traição, e se continuariam casados. “Haja o absoluto amar, e qualquer causa se irrefuta”, respondeu-lhe Jó Joaquim. (“e o povo tornou a aplaudir”). 
Por ser “da vez” dos jurados “terem as causas, não por justas, mas averiguadas”, Jó Joaquim foi absolvido. 


     “Celebrava-a ufanático” (a vitória). A lógica “avessa” que Jó Joaquim empregou foi esta: — “Primeiro que todos”, Jó Joaquim tinha certeza de sua absolvição, porque elaborou sua defesa baseado na própria experiência, além de “operar o passado, plástico e contraditório rascunho”, da seguinte forma: - Citou a vulnerabilidade da Sra. de Rênal, para demonstrar a de Líria, e negou superlativamente que ela tivesse amantes, para dizer que ela não era igual a Emma Bovary. (Acontece que, quem não é visto, também não é lembrado). Jó Joaquim não deveria ter citado Emma Bovary, cujo nome traria a lembrança de suas traições e de sua grave enfermidade mental, portanto, era negativo. 
     E a Sra. de Rênal até podia ser vulnerável, mas não deixava de ser uma traidora. Além do mais, “quis prová-la com o arquétipo da Sagrada Escritura”. O que Jó Joaquim conseguiu provar, pela terceira vez, é que Líria era “Adúltera”, e não “vulnerável”. 
     Quando a esmola é demais, o santo não desconfia? A promotoria percebeu que tanto perdão dado, não cabia: que Jó Joaquim estava adotando o mesmo pensamento de “Maquiavel”, em sua política pérfida, desprovida de toda moral, na qual “os fins justificam os meios”, ou seja, por dinheiro, e por sua própria liberdade, estava sendo obrigado a perdoar a esposa, publicamente, pois ele dependia exclusivamente do depoimento de Líria para se livrar da prisão. 
     Jó Joaquim também errou ao ter dito —“Haja o absoluto amar, e qualquer causa se irrefuta,” ou seja: qualquer nova traição de Líria que desse causa ao fim de seu amor por ela, ele a refutaria, e continuaria com ela, porém disse ao contrário, (irrefutaria).

     Explico de outra forma: as digitais em uma arma são consideradas “provas irrefutáveis”, mesmo que a arma seja de outra pessoa, portanto não se refuta. Mas observem que irrefutável é “a prova e não a causa”. Assim como “o morto é a prova”; e não “a testemunha”. Como Jó Joaquim “irrefutou a causa”, terminou por “refutar a prova de seu amor por ela”. 
   Mais uma vez, tem-se que dar razão ao Narrador quanto “à bonança nada ter a ver com a tempestade”: o fato de Jó Joaquim ter sido absolvido, não quis dizer, absolutamente, que o “Tribunal tenha nele acreditado”. 


    Sabe-se que “A Justiça é e deve ser cega”, mas obrigou-se a se fazer de surda”, por falta de provas. Jó Joaquim não teve nenhum mérito; muito pelo contrário... Juiz, Promotores e Advogados sabiam como se “desmanchava o transato, a anterior evidência e seu nevoeiro”.  Já o povo e os Jurados permaneceram com dúvidas, (com a pulga atrás da orelha), mas aceitaram. 
    O mais grave erro de Jó Joaquim foi o de negar superlativamente tais adultérios, e demonstrar que “falava de mais alto” (que a Escritura, segundo Padre Vieira). 
    Mediante tais procedimentos, “Jó Joaquim trouxe à boca de cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja”. 
     São vários os sentidos de "raso", mas os que particularmente interessam, são estes: 



       — Em Linguagem Militar, “raso” é quem não tem graduação;
ex.: Pôr alguém raso é deprimi-lo, dasacreditá-lo; 
     — Em Linguagem Jurídica, a Forma Tabelioa é: “Em público e raso, com a assinatura por extenso, e feita na presença de testemunhas.” 
    O autor empregou esse pequeno, mas “notável vocábulo”, como prova que se adquire para esse fim: a de que Jó Joaquim não tinha competência para se defender. Mas obtendo a vitória, “Jó Joaquim celebrava-a ufanático”. 



    A aglutinação de “ufanista” com “lunático” foi a forma de Guimarães Rosa se reportar ao Pré-Modernista Lima Barreto, que pela linguagem despojada e sem compromisso com o purismo gramatical, foi o preferido dos Modernistas. 
    O livro “Triste Fim Policarpo Quaresma” tem como personagem principal, o Major Policarpo, cujo carácter excessivamente patriótico, (ufanista) enviou uma petição ao Congresso Nacional, propondo-lhes que se decretasse o Tupi--Guarani como Língua Oficial do povo Brasileiro, alegando que essa língua, originalíssima, aglutinante, é verdade, mas que o polissintetismo de múltiplas facetas de riqueza, era a única capaz de traduzir nossas belezas, etc...  
    O Triste fim dessa proposição foi a seguinte: A princípio, Quaresma provocou nos congressistas um riso tímido; e conforme se desenvolvia a leitura da petição, a proposta foi se tornando hilária, ao ponto de levá-los às lágrimas.  Pelo absurdo que acharam da proposição, o Major foi considerado louco, e após muita discussão, foi preso, e finalmente, condenado à morte.  


    Tornando a falar “da falta de lógica de Jó Joaquim”, ele não só é como o poema “Epitáfio”, mas igual a “Macunaíma”; o herói sem nenhum carácter, de Mário de Andrade e uma das mais excepcionais obras da Literatura Moderna Brasileira. O autor deu-lhe o nome de Rapsódia. “O herói se caracteriza exatamente pelo comportamento ilógico”. Aliás, nas próprias palavras de Mário de Andrade: “é justo nisso que está a lógica de Macunaíma: em não ter lógica”. “O carácter que demonstra num capítulo, ele desfaz noutro”. 

    “Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida”. 

    - “Convolar” é mudar de partido e de ideias – ex.: convolar a segundas núpcias é contrair novo matrimônio; Jó Joaquim teve que mudar de partido e de ideias, para contrair novo matrimônio, e “conviver com a nova realidade”. 
     - “Convoluto” é enrolado longitudinalmente – ex.: as folhas secas são ditas convolutas. Como disse o Narrador, “o tempo secou o assunto”, o caso tornou-se “convoluto”, como folhas secas, do qual, pouco se tem a falar, mas ainda restam algumas interessantíssimas gotas de seiva a serem extraídas da árvore do discurso de Guimarães Rosa, como vocês verão. 
     Em Biologia, “convolados” refere-se ao aspecto fisiológico de um minúsculo e inseparável casal de vermes, do tamanho de um fiozinho de sobrancelha, denominado “Oxiúros” que, às vezes, habita o intestino humano. Esses vermes são inseparáveis, porque o corpo da fêmea, cujo bordo aberto de um lado, sempre abriga o do macho. Assim formatados, vivem simbioticamente, ou seja, a sobrevivência de um, depende da do outro. Jó Joaquim e Líria achavam-se espertos como serpentes, e ao empregarem “suas habilidades” contrariamente à Lei dos homens e à do Criador, terminaram reduzidos à condição de um “inseparável casal de vermes”, vivendo convolados. 
    “Os Oxiúros não fazem parte da flora intestinal humana, e quando seus ovos são ingeridos, proliferam-se rapidamente, causando intensa coceira anal”. Essa é uma verminose difícil de ser curada, porque a pessoa que os tem, ao dormir, coça-se, e sem perceber, leva as mãos à boca, ingerindo novos ovos, tornado a se infestar. Essa é outra razão pela qual “Jó Joaquim pegou o amor”: ingeriu “as Lérias de Líria Escabrosa”, contaminou-se com “os vermes da mentira”, “que o tornaram célebre na arte de mentir, de caso raso”. 
    Se o casal se olhasse ao espelho do poema de Tristan Corbière, certamente “vir-se-iam a si próprios ao microscópio; micróbios de seu próprio ópio”. E neste instante, para meu próprio espanto, também me vejo neste mesmo espelho, “reduzida a verme, micróbio de meu próprio ópio, olhando-me como uma formiguinha e vendo-me duas: irmã siamesa de outra espécie de mim: a do cupim. 
    Segundo o Dicionário, “formiguinha branca é o nome popular do cupim-terra, que ataca pelo subsolo, e vai comendo tudo o que encontra pela frente, a fim de chegar ao tronco de uma árvore, ou ao madeiramento de uma edificação, e degustá-lo”. 
  Como intérpretes, também somos reduzidos a vermes, para podermos trabalhar como “formiguinhas, atrás da verdade”, e degustarmos, como cupins, o difícil texto, tão duro de roer quanto madeira-de-lei.  Mas degustar o texto como cupim é uma referência à Antropofagia Cultural que os Modernistas brasileiros cultuavam. 
     Sinteticamente, é “A transformação do Tabu em totem”, ou seja, devemos “devorar toda a cultura europeia, ritualisticamente, e absorvê-la, para só depois, sermos independentes e criarmos a nossa própria”; ou como bem se expressou Antero de Quental, “sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais.” 
    Mas terminando com a análise deste trecho, vejamos por que o Narrador finalizou dizendo, “o verdadeiro e melhor de sua útil vida”. 
— útil: Que tem préstimo, serventia e satisfaz uma necessidade; ex.: o automóvel é útil. 
Que traz vantagem, proveito ou benefício. ex.: negócio vantajoso, dia proveitoso e conselhos úteis; 
Tempo útil: prazo legal, tempo prescrito em lei. 
    Bem, nem é preciso discorrer sobre o quanto “o casal de pombinhos” usufruiu das facetas desse adjetivo, e Jó Joaquim ainda desprezou os “ úteis conselhos” dos amigos. 
    E não só por ferir a Lei comum, mas principalmente, por ferir o “Rigor Geral das Leis Universais”, o casal consumiu quase que a totalidade de seu tempo útil, prescrito por essas Leis, para que se regenerassem, pois já estavam a um passo de serem “definitivamente devolvidos ao barro”. 
   E, finalmente, em lugar-tenente, Jó Joaquim teria que repensar em sua conduta, e empregar o restante de seu “tempo útil”, prescrito em lei, para sua própria redenção, porque “SORTE” não dura para sempre. 
     Aliás, a verdade completa sobre a sorte é sempre assim: Sorte de um(s), para azar de outro(s). 
    Para lhes dar “esse tempo e tentarem ser felizes, pela terceira vez”, o autor não matou, nem desatou o casal; apenas os convolou e os colocou em “ata” (escreveu o conto). “E pôs-se a fábula em ata”.

     Qualquer palavra dita por Guimarães Rosa sempre tem profundidade.  Em Jurisprudência, Ata é o registro escrito de um processo jurídico, de um julgamento, que deve estar à disposição dos advogados, a fim de ser consultado, portanto a Ata é a prova notável de que o julgamento de Jó Joaquim existiu, e não foi elaborado apenas por elucubrações de uma louca intérprete apaixonada. 
       Em outra definição, Ata é uma fruta, porque “O fruto é o fim a que se deve destinar o Sermão”.      Observem como Guimarães Rosa transformou-se numa “sedutora serpente”, oferecendo-nos, gentilmente, por três vezes, para provarmos o fruto da árvore de sua ciência, de seu contraditório sermão, porque este fruto também tem três nomes: Fruta-do-conde, Pinha e Ata. 
    Quanto à Fábula, segundo o dicionário, “Fábula é Conto Alegórico, geralmente em versos; tem como personagens quase sempre animais, e como objetivo, uma lição de moral (que pode ser implícita ou explícita)”. 

     “Fabulação”: ação de fabular, de substituir a verdadeira realidade por uma aventura imaginária, que serve para conto ou novela. Ao definir a Narrativa como “Fábula”, o autor encerrou uma moral implícita e outra explícita, por vir escrita e à parte do texto. Encontrar a implícita depende de cada leitor. Em Desenredo, a “Fábula” é desenvolvida pela “Lenda”, cuja noção de veracidade dos fatos ocorridos, perde-se no tempo...  

     A “Lenda”, por sua vez, desempenha o papel dos enigmas e da temática dos triângulos amorosos:        -“Jó Joaquim reportava a lenda a embustes”. 


    O nome de Jó Joaquim deveria ser apenas Joaquim, mas devido à escolha do arquétipo, tornou-se dele um escravo, na seguinte medida: escravo do insano amor de Líria, do dinheiro dela e de suas próprias mentiras. A título de comparação, os escravos na Idade Média, traziam o nome de seus donos à frente dos seus próprios. 


   Se o leitor lançar um “olhar plástico” para o nome de Jó Joaquim, verá que ele é a mentira personificada em seu próprio nome; também é a contradição dele pelo verdadeiro Jó Bíblico. Realmente, Jó Joaquim mais se parece com “Escravos de Jó, que jogavam Caxangá”, sempre a errar a hora e o lugar onde deveria parar. Da primeira vez, ele chegou antes da hora combinada, e matou um, por engano; da segunda vez, chegou “em péssima hora”, (Jó Joaquim quis dizer que a hora era muito ruim para os traidores, mas péssima para ele mesmo!), porque seu desejo era o de matar Líria, mas como ela lhe fugiu, cometeu o seu segundo e enorme engano: descarregou seu ódio no Traidor, e não soube parar antes de matá-lo. 

    Como poeta, Jó Joaquim viveu vários tipos de amores literários: o Trovadorismo, o Classicismo, o Romantismo, os dois tipos de Realismo, o Simbolismo, o Modernismo, mas em seu atual momento, seria preferível ele viver o Arcadismo, que valoriza o tempo presente, de acordo com a concepção Epicurista “Carpe diem”: “aproveite o seu dia”. O destaque é para o português Manuel Maria Barbosa Du Bocage, que escreveu poesia lírica e satírica, vazada em idílios, odes, epigramas, canções, elegias, sonetos, etc... (1765 a 1805). Dentre os 375 sonetos de sua obra, denominada “As Rimas”, algumas são magistrais, e estes dois sonetos são “muito úteis” para Jó Joaquim repensar em seu atual momento. 



                                                                       I



                                                 Meu ser evaporei na lida insana 
                                             Do tropel das paixões, que me arrastava:
                                             Ah! Cego eu cria, ah! Mísero eu sonhava 
                                           Em mim quase imortal a essência humana: 



                                                 De inúmeros sóis a mente ufana 
                                                 Existência falaz me não dourava! 
                                           Mas eis que sucumbe Natureza escrava
                                           Ao mal, que a vida em sua origem dana. 



                                          Prazeres, sócios meus, e meus tiranos! 
                                         Esta alma, que sedenta em si não coube, 
                                           No abismo vos sumiu os desenganos 
          
                                     Deus, oh Deus! ... Quando a morte à luz me roube
                               Ganhe um momento o que perderam anos, (Carpe diem) 
                                          Saiba morrer o que viver não soube. 
                                        Minh’alma quer lutar com meu tormento; 
                                           Contenda inútil ! É por ele o Fado: 
                                          Apenas de oprimir-me está cansado 
                                             Eterna força lhe refaz o alento:


                                             Mais vale que delire o pensamento 
                                           Té’agora coa Razão debalde armado; 
                                             É menos triste, menos duro estado
                                             A Desesperação, que o Sofrimento: 


                                               A Desesperação soluça e chora, 
                                               A desesperação mil ais desata, 
                                          Parte do mal nas queixas se evapora: 


                                             O Sofrimento azeda o que recata: 
                                             Prende suspiros, lágrimas devora, 
                                           Tiraniza, consome, e às vezes mata. 



                                                                      II



                                           Já Bocage não sou! . . . à cova escura
                                         Meu estro, vai parar desfeito em vento . . . 
                                           Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
                                            Leve me torne sempre a terra dura: 
                
                                            Conheço agora já quão vã figura 
                                      Em prosa e verso fez meu louco intento; 
                                         Musa . . . Tivera algum merecimento 
                                           Se um raio de razão seguisse pura! 


                                         Eu me arrependo; a língua quase fria 
                                         Brade em alto pregão à mocidade, 
                                         Que atrás do som fantástico corria: 


                                           Outro Aretino fui . . . A santidade
                                  Manchei! . . . Ah! Se me creste, gente ímpia, 
                                       Rasga meus versos, crê na eternidade. 


*Aretino, era Pedro Aretino (1492 – 1556), Satírico italiano, licencioso e maledicente, autor de “Diálogos (1536)” e de outras obras do gênero. 
   Mas, retornando-se à Fábula e à Lenda, vê-se que Desenredo é muito mais que isso. É Conto Policial, pois precisamos pensar como detetives, para descobrirmos “por quê”, “por quem”, “como”, “e quantos crimes foram cometidos”. 


    Mas a classificação perfeita é a de “Conto Maravilhoso”, cujas modalidades são: Pagão, Cristão, Fantástico, Alegórico, Subjetivo e Científico. (total de seis). 

     Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários, classifica um Conto como Maravilhoso, a começar pela origem da palavra: “Do Latim mirabilia, coisas admiráveis”. “Consiste na intervenção dos deuses no plano terreno (ex.:“e como à Providência Praz”), e/ou em toda mudança na ação da tragédia e da epopeia, provocada por agentes sobrenaturais ou não.  Numa palavra, “é tudo que desencadeia a admiração pela surpresa (ex.: “Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer”. Isto, sem contar com as “nossas inúmeras surpresas”). 

    “Maravilhoso Cristão” — evidente nos “milagres” protagonizados pelos santos e figuras bíblicas: (ex.: “dependiam eles de enorme milagre, do inebriado engano e da escolha dos Arquétipos da Sagrada Escritura, para salvá-los). 

    “Maravilhoso Fantástico” — promana da superstição e da imaginação difluente, que se afasta da realidade ou a distorce, assim manifestando “conflitos do real e do possível” (ex.: Jó Joaquim operou a Realidade; transplantou as personagens dos romances Realistas e as trouxe para sua própria vida). 

   “O Maravilhoso Alegórico” — emprega o Fantástico ligado às Figuras de Estilo (alegoria, prosopopeia, eufemismo, metáforas, etc. A respeito das Figuras de Estilo, vimos várias, e dispensam comentários, mas a Alegoria merece atenção especial — “Alegoria, do grego, “allegoría”, outro discurso”. 

     “Etimologicamente, a alegoria consiste num discurso que faz entender outro, numa linguagem que oculta outra. Pode-se considerar alegoria toda concretização, por meio de imagens, figuras e pessoas, de ideias, qualidades ou entidades abstratas.” 
    O trabalho desenvolvido pela análise de Desenredo é a própria definição de Alegoria, pois partiu da abstração, para a posterior concretização de tudo o que “foi e não foi” ouvido, visto ou falado, por meio de ideias, qualidades, entidades abstratas e de pessoas. Enfim, de tudo, cujo fim supõe outro discurso, “O Sermão”, principalmente. 


    Ainda pela definição de “Alegoria”, por Massaud Moisés: -“Visto que a narração constitui o expediente mais adequado à concretização do mundo abstrato, tem-se como certo que a alegoria implica um enredo, teatral ou novelesco. E daí a impressão de equivaler a uma sequência logicamente ordenada de metáforas: o acordo entre o plano concreto e o abstrato processa-se minúcia a minúcia, elemento a elemento, e não em sua totalidade.” O desenvolvimento da interpretação de Desenredo também veio se processando “minúcia a minúcia”, “elemento a elemento”, pois como já lhes foi explicado, não há como disparar pelas linhas, em busca do enredo, tanto pelo conto estar sob a mira de lentes divergentes, quanto por estarmos subjugados ao aspecto formal da Narrativa, o da Alegoria. 

     “O Maravilhoso Subjetivo” — caracterizado pelas alucinações, ou seja, alterações profundas da realidade concreta, determinada pela psicologia enferma das personagens, como por exemplo, a visão de fantasmas: Na verdade, “os sentimentos de estranheza, de influência, os pressentimentos se encontram tanto nos heróis-vítimas dos contos fantásticos quanto nos esquizofrênicos e psicastênicos”. 


1 – “psicologia enferma”: descobriu-se que Líria sentia prazer em sentir dor”; 
2 – Visão de Fantasmas: “Deu-se a entrada dos Demônios”; 
3 – “Sentimentos de Estranheza”: o primeiro sentimento desse tipo é o nosso, ao lermos o conto pela primeira vez, e o segundo é este: “Jó Joaquim exercitava-se a aguentar-se nas defeituosas emoções”;
4 – “Sentimentos de Influência”: “Jó Joaquim nela acreditou!”; 
5 – “Esquizofrenia”: Jó Joaquim tinha delírios de grandeza, vivia a se imaginar “primeiro que todos”: “inédito poeta e homem”, o único homem e marido de Líria, rico, célebre, o mais esperto, etc... 
6 – “Psicastenia”: Jó Joaquim acreditou em seus próprios delírios de grandeza. E tanto fez, que se tornou “célebre-mentiroso”, “herói-vítima” e “assassino compulsivo” (como bem o imaginou o primeiro marido de Líria). 


      A última modalidade do Conto Maravilhoso é o “Científico”. Esse é o mais recente, desenvolvido a partir do progresso das Ciências nos últimos séculos, como é o caso da ficção científica, praticamente inaugurada por Júlio Verne. 


     Já no começo da análise foi abordado o aspecto científico do conto, que se apoia em algumas Leis Universais, e na Metafísica principalmente. Estas foram as seis modalidades “do e deste” “Conto Maravilhoso”, que é Desenredo, cujo autor, com sua genialidade, empregando o mínimo de palavras, narrou-o contraditoriamente, além de cobri-lo “com outro”, com o “Sermão”. Entretanto, pela extensão que Desenredo passou a ocupar, assumiu “certo aspecto de Novela”, que apresenta pluralidade de células dramáticas, representadas, neste ensaio, pelo processo de intertextualidade. 

     A Novela também se caracteriza por algumas aberturas finais na direção de novas aventuras. A abertura final de Desenredo indica que o casal provavelmente virá a ter os mesmos problemas. Isso quer dizer que o final da Narrativa pode ser igual ao seu começo, portanto é cíclica, gira sobre si mesma, como a própria Terra, porém, não pode ser a ela conformada, porque são inversas: - A órbita da Terra obedece ao comando das Leis Universais, e é enorme; mas sua velocidade é lenta, conforme “os passos daquele Burrinho”. Já “o amor clandestino” é fora da Lei, desgovernado, gira em alta velocidade, e comparado ao tamanho da órbita da Terra, é minúsculo. Pode-se perceber de outra forma esse movimento de rotação da Narrativa, quando o autor diz: - “Três vezes passa perto da gente a felicidade”. 
    Devemos nos imaginar num ponto fixo, vendo “a felicidade passar como num carrossel que perdeu o freio, cujos cavalinhos giram desembestadamente”. 


    Manuel Bandeira, sempre lembrado por Guimarães Rosa, escreveu uma poesia plena de ritmo, em 1936, num almoço, no Jockey Club, em Homenagem a Alfonso Reys, que estava partindo do Brasil. A poesia chama-se “Rondó dos Cavalinhos”, e ilustra com perfeição, “o que é estar num ponto fixo, a ver um carrossel passar em alta velocidade”. (Notem que o poeta termina entrando com a mastigação do almoço, no mesmo ritmo em que correm os cavalos). 



                                     Rondó dos Cavalinhos




Os cavalinhos correndo, 


E nós, os cavalões, comendo. . . 
Tua beleza, Esmeralda, 
Acabou me enlouquecendo! 



Os cavalinhos correndo, E nós, os cavalões comendo. . . 
O sol tão claro lá fora 
E em minh’alma — anoitecendo! 



Os cavalinhos correndo, 
E nós, os cavalões, comendo. . . 
Alfonso Reys partindo, 
E tanta gente ficando. . . 
Os cavalinhos correndo, E nós, os cavalões, comendo. . . 
A Itália falando grosso, 
A Europa se avacalhando. . . 


Os cavalinhos correndo, 
E nós cavalões, comendo. . . 
O Brasil politicando, 
O sol tão claro lá fora, 
O sol tão claro Esmeralda, 
E em minh’alma — anoitecendo! 



     Chegamos a um ponto importante, que vem a ser esta expressão, que resta ser analisada de outra forma: “O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos.” 


    Guimarães Rosa escreveu Desenredo e muitos outros contos para um Jornal, cujo espaço era reduzido, obrigando-o a enxugar o discurso e “a conformar o tamanho de suas narrativas a ele”. Por isso, Guimarães Rosa também “viu-se a si próprio ao microscópio”, e “a tal arte” a que ele se referiu também é a do inigualável pintor holandês e Pós- Impressionista Van Gogh, que pintou sua própria imagem, não com pinceladas, mas aplicando pontinhos de tinta na tela, até completá-la. 
     Inspirado na técnica pontilista de Van Gogh, Guimarães Rosa, em Desenredo, “foi colorista sem cavalete, e usou a caneta como pincel” para escrever o reduzido conto e pintar o próprio retrato, já que a narrativa tanto reflete sua arte de lidar com a palavra, quanto sua cosmovisão de “inédito escritor e homem”. 
     A técnica empregada foi pontilista e semelhante ao Tupi-Guarani, ou seja, “aglutinante (ufanático e abusufrutos), e polissintética, de múltiplas facetas de riqueza”, capaz de disseminar tantos significados, a cada palavra dita; a cada expressão empregada. 
     Para arrematar este Ensaio, e já que a Narrativa é cíclica, é preciso fechá-la com a expressão que foi o ponto de partida: “O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima”. Mas, antes disso, é preciso tecer alguns comentários: 
    - O Mestre dos mestres, o grande Machado de Assis, cuja linguagem é oposta à de Guimarães Rosa, ou seja, “é clara como água límpida”; sempre escreveu, com profundidade, mas, apresenta, com o autor de Desenredo, um importante “ponto em comum”: os dois foram grandes desbravadores da alma humana. 



Em um de seus incríveis contos, intitulado “O Espelho”, Machado de Assis lhe dá o Subtítulo de (Esboço de uma nova teoria sobre a alma humana). 

   Vou resumi-lo ao máximo, mas tentarei extrair-lhe a essência: Quatro cavalheiros tratavam de questões de alta transcendência, verdadeiros investigadores de cousas metafísicas, resolvendo os mais árduos problemas do universo. 

    A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma humana, “ponto em que dividiu radicalmente os quatro amigos”. E dada a multiplicidade de questões que se deduziam do tronco principal, Jacobina, o quinto personagem, que sempre os ouvia, mas nunca falava, foi convidado a dar alguma opinião — uma conjetura, ao menos. Como ele nunca discutia, pediu aos quatro que apenas o ouvissem calados, e explicou: 
    — Posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, mas duas. . . Cada criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. 
     Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior da pessoa. Está claro que o ofício dessa segunda alma é a de transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. 
     Quem perde a metade, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira, Shyloc, por exemplo. A alma daquele judeu eram seus ducados; perdê-los equivaleria a morrer. “Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração.” A perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. 
    Agora, disse Jacobina, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas, e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas de natureza mudável. 
    Conheço uma senhora, gentilíssima, que muda de alma exterior cinco a seis vezes por ano. Durante a estação lírica, é a Ópera; Cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, Petrópolis... Essa senhora é parenta do Diabo, e tem o mesmo nome: chama-se Legião... Uma vez explicado aos quatro que toda pessoa tem duas almas; qual é sua natureza, e que ela é mudável, começa a contar sobre sua própria mudança de alma exterior: 
    - Tinha ele, Jacobina, seus vinte e cinco anos, quando foi nomeado para alferes da guarda nacional. Como o cargo foi muito disputado, tornou-se o orgulho da família. Sua mãe o chamava de “seu alferes”. Primos, tios, tudo foi uma alegria sincera, embora houvesse, na Vila, alguns despeitados. 
    Vai então que uma de suas tias, D. Marcolina, viúva do capitão Peçanha, pediu que ele fosse ter com ela, e levasse sua farda. Ela então o pilhou no sítio, e escreveu à mãe dele, que não o soltaria antes de um mês, pelo menos. Achava-o um rapagão bonito. Jurava que não havia outro que lhe pusesse os pés adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda alferes. Tinha até quem o chamasse de “senhor alferes”, à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. 
     O Entusiasmo de tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr, no quarto do sobrinho, um grande espelho que estava na sala, obra rica e magnífica, que destoava do resto da simplicidade da casa, e que “o senhor alferes merecia muito mais”. 
    O certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram nele uma transformação. “O Alferes eliminou o homem”, ficando nele, uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que dantes era o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que lhe falava do posto, nada que lhe falava do homem. No fim de três semanas ele era outro. Era exclusivamente alferes. Foi quando tia Marcolina recebeu a notícia de que uma de suas filhas, residentes a cinco léguas dali, estava à beira da morte. 
Deixou o sobrinho com poucos escravos, tomando conta do sítio, e partiu. Adeus sobrinho! Adeus alferes! 
     Vendo-se sozinho, logo sentiu uma grande opressão, como se quatro paredes de um cárcere fosse erguida em torno dele. E os escravos redobraram de atenção, de respeito e de alegria, um concerto de louvores e profecias. Nhô alferes de minuto a minuto. Ah! Pérfidos, fugiram-lhe os escravos. Na manhã seguinte, achou-se só, sem mais ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas somente, um par de mulas que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. 
      Dias se passaram, e ele se sentia um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco. O sono dava-lhe alívio, não pela razão comum de ser o irmão da morte, mas por outra. O sono eliminava a necessidade da alma exterior, e deixava a interior agir. Sonhava com a família e seus rapapés e fazia-o viver. Ao final de oito dias, deu-lhe na veneta de olhar-se ao espelho. Olhou e recuou; não se estampou nítida e inteira sua figura; mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. 
     A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-o textualmente, com os mesmos contornos e feições, mas não foi sua sensação. Pensou que tinha enlouquecido. Vou-me embora, disse, e levantou o braço, e no espelho, o gesto feito estava disperso, esgaçado, mutilado... Tentou outras vezes, e da mesma forma se via. Subitamente, surgiu-lhe a ideia de vestir a farda e olhar-se novamente. Qual não foi seu espanto! O vidro reproduziu sua figura integral; nem uma linha de menos, nenhum contorno diverso; era ele mesmo, o alferes, que se achava, enfim, a alma exterior. 
    Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Daí em diante, foi outro. Cada dia, a certa hora, vestia-se de alferes, sentava-se diante do espelho, lendo, olhando, meditando, depois retirava a farda. Com esse regime, pôde atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir. Quando os quatro amigos voltaram a si, Jacobina tinha descido as escadas. 


     Os leitores devem estar tão fascinados pela beleza do conto quanto eu, e este foi só um resumo, mas acordemos da linda viagem a Machado e voltemos a Jó Joaquim. A “alma exterior” (a de querer ser rico e célebre poeta), adquirida por Jó Joaquim, “eliminou a do homem”, (a interior, a que olha de dentro para fora), ou como diz Guimarães Rosa: “a de Deus dada”. E eis que se chega ao momento da epifania; à sublimação de que lhes falei: à alma do conto. A alma exterior de Jó Joaquim é a outra metade; “a segunda metade da laranja”, ou seja, a alma do grande escritor Guimarães Rosa, que via Jó Joaquim “de fora para dentro”. 
     O poeta Guimarães foi o herói-vítima de Jó Joaquim, “seu escravo”, já que para demostrar a sua própria alma de escritor, teve que dizer, “desdizendo-se” e, “ilogicamente”, “contradizendo-se”. 
    Castro Alves, para exemplo oposto, é conhecido como “o poeta dos escravos”, por defendê-los, e cantá-los diretamente, enaltecendo suas dores.   Já o escritor Guimarães Rosa teve de tomar emprestada a alma de “um poeta que se tornou escravo”, para contrariamente à sua própria, tecer a de Jó Joaquim. 
     Já se sabe que Jó Joaquim “realmente era bom, mas como cliente”, pois seu advogado não precisou de nenhum esforço para livrá-lo da prisão. Entretanto, não era bom como poeta, muito menos como advogado, pois Jó Joaquim livrou-se das grades, mas por falta de provas, ou por “um bem logrado, malogrado”. Mas como o povo o aplaudiu, e ele conseguiu a vitória, sua alma exterior deve ter crescido ainda mais. 
       Jó Joaquim deveria se conformar com a falta de recursos materiais que o impediam de editar e de divulgar suas obras; e quem sabe, chegasse a ser descoberto e divulgado, quando já não mais existisse. Exemplo perfeito disso é encontrado na Biografia do grande Van Gogh, que morreu no anonimato e na penúria, mas de seu estilo de pintura “não desistiu”, pois tinha certeza do conteúdo artístico de seus quadros. Van Gogh, igualmente a Camões e a César, cujas almas exteriores “eram absorventes, enérgicas e exclusivas”, não chegaram a eliminar, mas fundiram-se à interior, tanto que se firmaram na posteridade. 
      Como escritor, Guimarães Rosa “tinha tudo para ser” como Van Gogh, (reconhecido muito tempo depois de sua morte), pois sabia das dificuldades impostas pelo seu estilo de linguagem, mesmo assim, não abriu mão dele, e “felizmente, “deu-se o desmastreio”: O inédito poeta-filósofo que habitava a alma do grande escritor, Guimarães Rosa” foi reconhecido em vida, ou melhor, “os três foram”: o poeta, o filósofo e o escritor; por isso é sublimação. E pelo reconhecimento, “três vezes passa perto dele a felicidade” ... “Passa perto”, porque só virá a se completar, quando cada leitor deixar a superfície, e mergulhar, em profundidade, na abstração exigida pelos seus textos. 
    Em um de seus contos, disse Guimarães Rosa: “Viver é encargo de pouco proveito, e muito desempenho”. 
     De fato, a complexa tessitura de Desenredo demonstrou o grande desempenho desse autor, que escreveu a narrativa para “desenredar” o próprio estilo, e os conceitos que a regem, além de demonstrar “a sua alma de poeta”, e de “proibir-se de ser pseudopersonagem”. Pois então, se ele não é “pseudo”, mas é “personagem”, onde está, e por que ninguém o vê? 
      O fato é que ele “foi coberto de sete capas”. O trabalho com lentes divergentes tornou “o escritor-personagem Guimarães” quase imperceptível, foi sobreposto pela imagem de “seu dono”: de Jó Joaquim, embora escravo, mas personagem principal. Como diz Riobaldo em Grande Sertão: Veredas - “O senhor mire e veja”, e eu completo: pois “num abrir e não fechar de ouvidos” todos o ouvem; mas por falta de olhos, ninguém o vê”. 


     Padre Vieira materializou o discurso, e Guimarães Rosa materializou a sua alma de poeta-escravo, da seguinte forma: “O senhor mire a reta que vai para cima, mas com olhos de viva mosca, e não de mosca morta, e veja-me, pois lá estou, no subtítulo – anunciando-me como bandeira ao vento, em letras garrafais, “DO NARRADOR a seus ouvintes”. 
     Ele quer dizer que este Narrador não é desconhecido como na maioria das narrativas oniscientes, ou seja, que sabe tudo das personagens, mas não tem personalidade. É apenas uma voz que narra. Guimarães Rosa quer dizer que a voz deste Narrador é a dele próprio, como personagem. 
“A reta que vai para cima aponta para três caminhos: para a palavra divina , com a qual Padre Vieira escreveu seu belo discurso; para João Guimarães Rosa, que é o próprio Narrador, e finalmente, para a outra Fábula de João e o pé de feijão. 

   Um Menino chamado João, (igual ao “irmão siamês” de João Guimarães Rosa, mas de personalidades totalmente diferentes), foi ao mercado, a mando de sua mãe, para vender uma vaca. Porém, um estranho lhe oferece “cinco feijões mágicos” em troca do animal, e ele aceita. Sua mãe, muito brava com a troca mal feita, atira os feijões pela janela. Na manhã seguinte, João vê que os feijões germinaram, e originaram um gigantesco pé de feijão que tocava o céu, acima das nuvens. 

    Curioso como todo menino João é, subiu por ele e deu numa casa acima das nuvens, onde ninguém via, mas habitava um gigante dorminhoco, e grande devorador de pessoas, “e que o viu, num abrir e não fechar de olhos”.  
   Protegido pela esposa do grandalhão, João consegue fugir, levando uma sacola de ouro. No dia seguinte, João retorna para roubar a galinha dos ovos de ouro, e escapa ileso novamente. No terceiro dia, João torna a escalar o feijoeiro a fim de roubar a harpa de ouro. Mas ela “abre a boca e grita por socorro”, e acorda o gigante que sai ao encalço de João. (ele também deixou a felicidade passar, três vezes!). O menino escapa por pouco, desce correndo, e assim que o gigante começa a descer, ele corta a árvore com um machado, e o homenzarrão se espatifa no chão. — Que sorte, hem João! ... — Que sorte, hem Jó Joaquim! ... Mas João aprendeu a lição: “A ocasião faz o ladrão”, e como ele não resistiu a ela, aprendeu a segunda lição: ou cortava imediatamente o seu próprio mal, pela raiz, ou seria devorado por ele. 
    Tanto “João” quanto Jó Joaquim tinham à sua frente a árvore da vida, “a reta do caminho que os levaria diretamente ao céu, mas tomaram “o caminho errado”. 
    Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo vai por um caminho e vê outro à sua esquerda, e diz ao companheiro que aquela era “a Vereda da vaca morta”; creio que seja a Fábula de João e o Pé de Feijão. Na Sagrada Escritura há “Parábolas”; e na Literatura, dezenas de Fábulas. 
    Como o autor citou literalmente “a Fábula”; eu a acrescentei à Ata. Como intérprete, acho que aprendi a lição dada por Guimarães Rosa, e como penso ter “decifrado grande parte dos enigmas desta sua fábula”, também escapei de ser devorada por ele. 
      Igualmente à Lenda da Esfinge, Guimarães Rosa guardava seu território, “na valentia, com ciúme” (como marido e fera). Mas, diferentemente da Esfinge, “ele deve estar feliz com o nosso caso de amor clandestino”, pois escreveu “Desenredo” para ser desvendado por um intérprete que se apaixonasse pelo texto, que se colocasse no lugar dos amantes e fosse capaz de matá-lo, para ocupar o seu lugar de Narrador.
     Por isso, Guimarães Rosa faz uma homenagem a esse intérprete que, com muito esforço o interpretou e reescreveu seu conto. Então, o autor cede gentilmente o seu território, seu lugar de Narrador, que, no caso, é para mim, já que sou a “Nova Narradora da Nova, Transformada Realidade de Desenredo”; e espero que tenha chegado o mais perto possível da verdade. Também espero que outros intérpretes façam a “tréplica” ao meu ensaio, aperfeiçoando-o, pois a estória de “Desenredo” tem mais a oferecer: é meio parecida com a famosa “História sem fim”...
Mas paro por aqui, para não cansar os leitores. 


    João Guimarães Rosa, em seu discurso de posse, disse que “as pessoas não morrem; ficam encantadas”, e realmente ficam. Ele é muito difícil de compreender, mas totalmente impossível de esquecer, e para sempre ficará encantado em minha memória. Porém, se ele homenageia seus intérpretes, também devo fazer o mesmo por ele, afinal, este trabalho não existiria sem que Guimarães Rosa escrevesse “Desenredo”; e o faço, dedicando-lhe o poema de Vinícius de Moraes que, desta vez, pode retratar, com perfeição, o encantamento que ele me pôs na alma, ao vivermos nosso caso de amor clandestino. 




                                             Soneto da Fidelidade 




                                            De tudo, ao meu amor serei atento 
                                          Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto 
                                          Que mesmo em face do maior encanto 
                                          Dele se encante mais meu pensamento. 



                                         Quero vivê-lo em cada vão momento 
                                     E em seu louvor hei de espalhar meu canto 
                                         E rir meu riso e derramar meu pranto 
                                          Ao seu pesar ou se contentamento: 


                                       E assim, quando mais tarde me procure 
                                    Quem sabe a morte, angústia de quem vive 
                                      Quem sabe a solidão, fim de quem ama 
                                       Eu possa me dizer do amor (que tive):
                                     Que não seja imortal, posto que é chama 
                                          Mas que seja infinito enquanto dure. 
                                                                         .............. 




                                 
                                                              BIBLIOGRAFIA 



                                     Leitura das Obras de João Guimarães Rosa: 

*Sagarana – Nova Fronteira, 28º edição, R.J., 1984. 
*Primeiras Estórias – Nova Fronteira, 13º edição, R.J., 1985. *Tutaméia, Terceiras estórias – José Olympio, R.J., 1970. 
*Grande Sertão: Veredas – Licença Editorial para o Círculo do Livro, por cortesia da Editora Nova Fronteira S.A., Edição Integral, S.P., 1984. 
*Manuelzão e Miguelim (de Corpo de Baile) José Olympio, 6º ed., R.J., 1976. 
*No Urubuquaquá No Pinhém – José Olympio, 5º ed., R.J., 1976. *Ave Palavra – obra póstuma – José Olympio, 1970 – R.J.

                                           Leituras sobre João Guimarães Rosa: 
*Coleção Fortuna Crítica – Vol nº 6, com 579 pág. de textos críticos, por diversos autores de notável importância – Organizada por Coutinho, Eduardo F., sob a direção de Coutinho, Afrânio, da Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1983. 
*Rosiana - Coletânea de conceitos, máximas e brocardos, retirados das obras de Guimarães Rosa, em comemoração aos 75 anos que “ele faria”, em 1983, Editora Salamandra. 
*Caos e Cosmos – Leituras de Guimarães Rosa por Sperber, Suzi Frankl – Livraria Duas Cidades, 1976. 
*O Dorso do Tigre, - Nunes, Benedito – Ed. Perspectiva, 1969. *Recado do Nome – Leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens – Machado, Ana Maria, Ed. Martins Fontes, 19991, S.P. 



                                                     Dicionários Consultados 

*Dicionário de Termos Literários – Moisés, Massaud – Ed. Cultrix, S.P. (sem data). 
*Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira – Luft, Pedro Celso, Ed. Globo, 1987, S.P. 
* Lello Universal – Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, em 4 Vol. – Lello & Irmão Editores – Porto (sem data) 
*Michaelis - 2.000 – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, em 2 Vol. – Edição Esclusiva de Reader’s Digest Brasil Ltda. 



  
                       Alguns Teóricos Básicos Para Iniciação Em Crítica Literária: 
*A Personagem de Ficção in “Debates” – Ed. Perspectiva S.A., 1987. 
*A Literatura Portuguesa através dos Textos – Moisés, Massaud – Ed. Cultrix -11ª edição, S.P. 
*A Literatura Brasileira Através dos Textos – Moisés, Massaud – 2ª Ed. –Ed. Cultrix, S.P. 
*Teoria da Literatura – Amora, Antônio Soares – 5º Ed. – 1964 
*As Astúcias da Enunciação – As Categorias de Pessoa, Espaço e Tempo, - Fiorim, José Luiz – Ensaios. 
*Linguística e Comunicação – Jakobson, Roman – Cultrix (s/d) 
*O Tempo na Literatura – Meyerhoff, Hans – Ed. Mc. Grow-Hill do Brasil, Ltda. 
*Texto /Contexto in “Debates” – Rosenfeld, Anatol – crítica. 
*As Estruturas Narrativas – Todorov, Tzvetan 
*Tese e Antítese – Cândido, Antônio Editora Nacional -2ª Edição. 
*No mundo da Escrita – Uma Perspectiva Psicolinguística – Kato, Mary A. – Ed. Ática, 1990 – Série Princípios. 
*Paródia, Paráfrase & Cia. – Sant’Anna, Affonso Romano de – 3ª Ed. – Série Princípios.